por Duanne Ribeiro

Marco não vê a floresta. Nem nós. Ele não poderia: perdeu a visão aos 15 anos. Contudo, esse é um espaço razoavelmente familiar para o jovem, que pode, ademais, confiar nos seus sentidos do olfato, do tato e, principalmente, da audição. Nós também: guiados apenas pela narração de cheiros, texturas e ruídos, apoiados na memória que construímos desse lugar, avançamos, neste jogo centrado em recursos de áudio, junto com Marco, escolhendo por onde ir através da mata, em busca do avô do rapaz, que desapareceu há alguns dias. Infelizmente, existe algo mais entre essas árvores... algo que espreita na escuridão, incógnito, monstruoso e fatal.

Projeto produzido com o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020, o audiogame Breu: ataque das sombras é a sequência de Breu e deve ser sucedido por um episódio final. Ambos são jogos de aventura com elementos de terror e suspense, em que o jogador avança segundo suas escolhas, ao passo que investiga ambientes e conhece outros personagens. À frente desses games estão o designer Felipe Barros e o músico Tharcisio Vaz, que contaram com roteiro de Antônio Caetano e com uma equipe de dubladores, profissionais de som e programadores. Para esta matéria, nós conversamos com Felipe, que explicou como foi o processo criativo do jogo, suas referências, sua relação com a literatura e sua acessibilidade – Breu é voltado para videntes e não videntes.

“Nós formulamos o jogo partindo principalmente da nossa capacidade de produção sonora”, diz o designer. “Sendo uma equipe independente e pequena, tínhamos dois profissionais de áudio dedicados, o que é um luxo. Pensamos se seria possível formular um jogo sem interface visual e, assim, conhecemos os audiogames.” Antônio Caetano foi então integrado ao projeto e, com um edital da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, o trabalho começou. Inicialmente seria só um game, mas a história precisava de mais e se tornou uma trilogia. Com o primeiro Breu, ganharam aprendizados: como nele o jogador podia se movimentar livremente, isso causou dificuldades de jogabilidade e aproveitamento da história. “Para Breu 2, reformulei o gameplay, que passaria a focar mais nas decisões do jogador, o que ampliaria o seu grau de acessibilidade”, conta Felipe.

Além da mecânica, Breu: ataque das sombras se destaca pelo texto: tanto a descrição do espaço quanto os diálogos apresentam qualidades, inclusive no âmbito da interpretação. Esse resultado teve um caminho cheio de desafios. Primeiro, o do roteiro propriamente de videogame. Como explica Felipe, para além da experiência literária de Antônio, era preciso pensar no que essa mídia pede em particular: “Existem várias distinções entre escrever um romance, um conto, e escrever um jogo. Tento fazer a ponte entre esses dois lados, para que possamos aproveitar muito da escrita dele e, ao mesmo tempo, alcancemos as características mais utilitárias do texto para o jogo”.

Ainda mais, segue ele, “conto com a equipe de produção, porque o trabalho do roteiro influencia bastante essa área. Que sons serão necessários para compor a cena? Que emoções devem ser centrais no diálogo? Qual é a relação dessa cena com a cena anterior? A equipe de produção ajuda a checar os elementos mais importantes. Com o texto completo, seguimos para as etapas seguintes”. A esse trabalho soma-se o do casting de atores e o da dublagem, dirigida por Tharcisio.

Em um estúdio de gravação, há três atores diante dos microfones, um no centro, ao fundo, os outros dois à esquerda e à direita.
Cena da dublagem do jogo Breu: ataque das sombras (imagem: Divulgação)

“Nossa principal preocupação”, afirma Felipe, “era garantir que o jogo não oferecesse vantagem para a percepção visual. Mas pensar uma experiência totalmente sonora em uma sociedade na qual há uma centralidade tão grande no visual não é uma tarefa fácil, então foi necessário contar com a participação e o interesse de pessoas com deficiência visual.” No primeiro Breu, compôs o projeto Iracema Vilaronga, mestre em educação e contemporaneidade com dissertação sobre audiodescrição. Já no segundo, a equipe teve consultoria de Victor Caparica, diretor da Imagem Acessível, empresa voltada para a inclusão nas artes. “É graças a eles que tivemos condições de modelar uma experiência pautada nesses valores em primeiro lugar”, assegura o designer.

O diabo de Guimarães Rosa e os diabos de Breu

Assim como se inspira na feição do horror e no uso do som de clássicos do cinema, como Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, Alien, o oitavo passageiro (1979), de Ridley Scott, e O enigma de outro mundo (1982), de John Carpenter – além de jogos como Amnesia: the dark descent (2010) e Alone in the dark (1991) –, Breu: ataque das sombras integra um ícone da literatura brasileira na sua narrativa: Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa. O livro, define Felipe, “é uma peça que tem importância central, até porque há nele o enfrentamento de uma criatura descrita como diabo. Nossa história traz criaturas que são entendidas como diabos pelos que as encontram”. Mobilizar tal símbolo, explica ele, “atiça a imaginação daqueles que experimentam a história e nos ajuda a refletir sobre como agimos em função do desconhecido”.

A relação do game com a literatura, comenta o designer, também pode ser pensada noutro sentido: “O gênero do jogo se aproxima muito de uma narrativa interativa, o que o coloca num lugar em que o texto é muito central à experiência. Ele é como uma leitura, mas incluindo elementos que reforçam a imersão na experiência do personagem”. O videogame em geral, pensa ele, abrange essa mescla “de diversas competências artísticas”. Nessa direção, Felipe acredita “que a literatura, seja em referências integradas ao jogo, seja produzida na construção do jogo, é importante para aqueles que buscam aproveitar o entretenimento. Boas referências sempre nos ajudam a pensar e compreender melhor, e é ótimo pensar que temos essa possibilidade de integração”.

Games de áudio cercados de vídeo por todos os lados

Felipe é igualmente autor da dissertação de mestrado Experiência com audiogames: deficiência visual e sinestesia entre polícia e política, defendida em 2020 na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e que se debruça sobre a relação de pessoas com deficiência audiovisual com audiojogos. No decorrer da pesquisa, o designer também construiu uma compreensão da história desse formato e do seu lugar no contexto atual – leia-se, nesse sentido, o artigo “Vejo com os ouvidos: os audiogames como vetores de (novas) experiências interativas”, publicado por ele junto com o professor Emmanoel Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2019.

Veja também:
>> Ouça o
podcast Ficções Itaú Cultural, de dramaturgias em áudio
>>
Acesse o site oficial de Breu e Breu: ataque das sombras

A partir disso, a pedido nosso, Felipe analisou as perspectivas do gênero dos jogos focados no som. “Eu encaro o cenário de audiogames como de nicho, mas com jogadores apaixonados. Acredito que tende a crescer, mas, pela centralidade da visão, existe uma dificuldade grande de romper a barreira dos jogadores videntes”, afirma. Contra essa situação, ele vê positivamente a popularização de mídias como os audiolivros e os podcasts, e tende “a achar que experiências de narração interativa são uma boa forma de tentar quebrar essa tendência”. Os dois primeiros Breu e a sua conclusão se inscrevem nessa linha, e, anuncia o designer, “acredito que seja possível realizar outras produções com esse modelo. Continuaremos trabalhando na certeza de que produzimos diferença”.

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