por Andreza Delgado

 

Minha estreia nesta belíssima coluna, que vai abordar o universo dos jogos, não poderia ser de outro jeito: uma provocação-manifesto.

Para começo de conversa, acho de bom tom contar que andam vendendo por aí que a indústria dos games é um lugar de muitas oportunidades. Acredito que não seja totalmente uma inverdade, mas precisamos abrir a caixa da indústria e problematizá-la um pouco mais para ver se realmente estão chovendo oportunidades e, obviamente, para quem.

Os números apontam que o Brasil está em quinto lugar no mercado consumidor mundial de jogos eletrônicos, e isso significa muita coisa, inclusive que precisamos entender quais são os perfis dos gamers no país. Quem são esses jogadores? Pertencem a que classe?

A princípio, talvez este texto pareça não ser uma leitura para todas as audiências, até pela falsa sensação de que pensar sobre o que significa a indústria dos games, sobretudo no Brasil, seja apenas para o público gamer. Posso prometer que, ao terminar a leitura, você vai concordar comigo e, inclusive, com a afirmação de que gamer não é só quem tem o maior e o melhor setup e joga absolutamente bem.

Juro para você: sua tia, sua mãe e sua vizinha, que amam jogar Candy Crush e Colheita Feliz no ônibus na volta do trabalho, também são gamers. E, já que tocamos no assunto dos jogos de celular – os famosos mobile, ou “joguinhos de celular”, como por vezes são depreciativamente chamados por aqueles que acreditam que quanto maior o setup melhor –, esses seguem trazendo grandes feitos. Free Fire, por exemplo, é considerado um fenômeno. Com números gigantes de jogadores e com campeonato próprio, o jogo movimentou uma audiência de 14 milhões de pessoas com a exibição da sétima edição da Liga brasileira de Free Fire na TV. Veja bem: estamos falando de um jogo de celular, em que os gráficos fogem da perfeição, mas que com certeza tem mudado a vida de algumas centenas de pessoas.

O jogo mudando

Eu me lembro de quando realizei a Copa das favelas – campeonato voltado para jogadores de favelas de todo o Brasil – e decidimos que a disputa seria com um jogo mobile. Nós colocamos em evidência vários times de jogadores com histórias incríveis e que precisavam ganhar espaço entre as que sempre são apresentadas: de jogadores profissionais das categorias de eSports que ostentam riquezas e fazem parecer que é tudo fácil em suas mansões gamers.

Fotografia colorida com equipe de e-sports LOUD. Na imagem ao centro, o fundador da organização, Bruno Bittencourt senta em uma cadeira e faz duas letras "L", símbolo da equipe, com as mãos. Ao fundo as outras pessoas da equipe estão em pé e fazer o mesmo símbolo com as mãos.
Equipe de e-sports LOUD e seu fundador, Bruno Bittencourt (imagem: divulgação)
Fotografia colorida da equipe Neutrox, vencedora do evento Copa das Favelas 2021. Na fotografia, quatro pessoas, com máscaras de proteção, seguram nas mãos caixas de celulares.
Equipe Neutrox, do extremo sul de São Paulo (imagem: Jef Delgado)

Entre pró-players e jogadores

A “Pesquisa Game Brasil” de 2021 apontou que negros e pardos representam 50,3% do público interessado em jogos no Brasil. No entanto, precisamos falar que, em contrapartida, as propagandas e as oportunidades para pró-players e influenciadores, assim como os demais espaços de trabalho na indústria, não abraçam essa parcela significativa da população. É inevitável a necessidade de seguirmos desconstruindo a imagem única do homem branco num mundo cheio de oportunidades. Será que não tem oportunidade para todo mundo? Ou existe uma escolha preguiçosa de continuar segmentando uma comunidade com o mesmo perfil? Não é apenas sobre números, mas também sobre a escolha que a indústria tem feito e sobre quem tem sido chamado de representante da comunidade.

Fotografia colorida do evento PerifaCon 2021. Na fotografia quatro pessoas negras conversam em frente a computadores.
PerifaCon 2021 (imagem: Anders Rinaldi)

Falando sério, quanto está custando um computador completo hoje? Por menos de 5 mil reais, você não compra uma máquina boa para fazer streaming e treinar para um campeonato.

Na outra ponta, avançamos incomodando e tocando o terror no imaginário daqueles que acham que uma comunidade se faz com apenas um perfil. Avançamos com iniciativas como o coletivo Wakanda Streamers, o AfroGames, a Copa das favelas, os Campeonatos indígenas e tantos outros contrapontos que me levam a acreditar fielmente que outra fase desse universo gamer é possível, com uma comunidade saudável e diversa.

Para celebrar as mudanças e aquecer os corações, no dia 15 de julho, Sher Machado, uma travesti negra, ganhou o prêmio de melhor streamer feminina numa premiação de alcance enorme. Alguns decidiram ir para as redes sociais contestar a vitória, e eu me peguei pensando que nunca existiu um rompimento de privilégio que não trouxesse barulho.“Enquanto os cães ladram, a caravana passa.” Em todos os anos, as categorias estão repletas de pessoas brancas vencendo e isso não traz nenhum desconforto, mas basta alguém que consideram “fora da curva” assumir o lugar de destaque e ter o trabalho reconhecido que tudo vira uma grande questão.

A verdade é que o problema não é exatamente o jogo, mas sim uma sociedade em que sempre se beneficiaram determinados grupos. E talvez, no fim, essa disputa toda para democratizar o que é um gamer também sirva para avançarmos na disputa por uma sociedade melhor.

Talvez eu não consiga colocar em palavras o quanto caminhamos para novos cenários enquanto tudo muda e avança no que diz respeito à tecnologia, mas o fato de estar neste espaço iniciando minha primeira coluna e trazendo essas reflexões é uma pontinha desses novos olhares e oportunidades.

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