por Duanne Ribeiro

A cantora Marina Lutfi, filha do multiartista Sérgio Ricardo, conta que, no trabalho com o legado do pai, vem tendo uma boa experiência: "Pessoas jovens nos procuram para dizer que se surpreenderam ao 'descobrir' Sérgio Ricardo". Diante da obra desse músico, ator, poeta, pintor, diretor de cinema elas se espantam, narra a cantora: "Mas por que eu não conhecia isso antes?".

"Essas indagações", diz Marina, provam "a relevância de colocar o trabalho dele em evidência." É esse o objetivo do projeto Sérgio Ricardo – Memória Viva, lançado no início de dezembro, com mais de 5 mil itens, entre obra artística e repercussões dos 70 anos de produção artística do homenageado. Ao Itaú Cultural – que apoia a iniciativa – Marina falou sobre o desenvolvimento desse acervo, iniciado em 2009, e sobre o que significa para a sua equipe retrabalhar a cultura e a memória, criando redes, atuando de forma transversal e trazendo dinamismo ao arquivo.

Afirma ela, "uma memória não viva seria o uso mais tradicional do acervo, como um depositário e organização dos materiais. É um caminho que o próprio Sérgio Ricardo jamais tomou para a sua vida. Então, a nossa memória só pode ser viva, contínua – uma memória ativa, um passado de ensinar e aprender para seguir sendo presente e fazendo futuro". Veja a seguir a entrevista.

O multiartista Sérgio Ricardo com a sua filha, a cantora Marina Lutfi (imagem: Michel Schettert)

Como foi o nascimento e o desenvolvimento do projeto Sérgio Ricardo – Memória Viva? Como foi o processo, que dificuldades enfrentaram?

É um projeto que já nasceu com 11 anos de vida, alegrias e percalços! O início foi em 2009, depois que o papai participou de um evento comemorativo dos 30 anos da Unirio [Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro], em um debate sobre o período da ditadura militar, no qual a universidade foi criada, e que contava com personalidades atingidas pela repressão. Estavam presentes, entre outros nomes, o cineasta Silvio Tendler, a historiadora Anita Leocadia Prestes e minha mãe, a museóloga Ana Lúcia de Castro, que também é professora da Unirio. Nessa mesa falou-se muito sobre a preservação da memória de pessoas diretamente afetadas pelo período, e surgiu a ideia do tratamento do acervo do papai, que foi um artista censurado e boicotado sistematicamente à época. Minha mãe então aprovou, com a reitoria da universidade, um projeto de extensão batizado de Memória Artística Sérgio Ricardo, que tinha direito a dois bolsistas de museologia por ano.

Nesse período, eu já estava trabalhando com ele como produtora e iniciando uma organização para seu site biográfico. Logo entrei para o projeto, fornecendo os materiais que iríamos começar a acervar: as fotografias ampliadas. Como sou designer, desenvolvi um banco de dados off-line para a catalogação das fichas. Ficamos nesse esquema por dez anos, conservando o material em caixas de polionda, papéis alcalinos etc. Tratamos os recortes de jornal, alguns impressos, transcrevemos algumas partituras. Chegamos a catalogar uns 1.500 itens durante esse período e tratamos mais uns mil que ainda seriam catalogados. Era difícil ter muita velocidade, porque o banco de dados já estava pesado demais e todo o material era comprado com recursos próprios, familiares, e o espaço de trabalho era – e fisicamente ainda é – na casa da minha mãe, na Urca.

Em 2017, fomos premiados com uma bolsa para projetos artísticos da Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro] para desenvolver o website e o banco de dados on-line. Iniciei, então, um processo criativo com meus parceiros de projetos em comunicação: Maíra Abrahão, redatora, e Marcos Rogozinski, desenvolvedor. Minha função era a de coordenar o projeto e desenvolver o design do site. Foi nesse período de criação e conceituação que rebatizamos o projeto do acervo de Sérgio Ricardo – Memória Viva, com essa ideia de mergulhar mesmo nessa obra que é imensa e profunda, e até criar novos movimentos a partir dela. Falar mais, viver mais a obra mesmo, em vez de só apresentá-la catalogada.

Bom, fechamos a versão final do site em 2018, mas ficou claro que, para anunciarmos o acervo, seria importante que mais coisas estivessem catalogadas, como as músicas, os filmes, os desenhos, todas as múltiplas expressões do Sérgio. E, sem equipe para isso, seria muito difícil conseguir concluir essa etapa. Foi aí que apresentei a proposta ao Itaú Cultural, e foi uma felicidade quando conseguimos esse apoio para a contratação de uma equipe multidisciplinar, que trabalhou (e trabalha) na catalogação de diversos tipos de mídias e, ao mesmo tempo, estrutura melhor a comunicação do projeto. Para essa nova etapa juntei pessoas que já faziam parte do nosso grupo de trabalho em produções de filmes, música, textos, ou seja, uma equipe entrosada e já apaixonada pela obra de Sérgio Ricardo.

Iniciamos o trabalho em março de 2020, em pleno ano pandêmico! E ainda marcado por uma jornada de muitas dificuldades na saúde do papai – que acabou sendo vítima de complicações de seu quadro clínico, já frágil, por ter contraído a covid-19. Mesmo tendo se recuperado da doença, o coração não aguentou e ele partiu em 23 de julho. Foi ao mesmo tempo um baque e uma nova onda de força para continuar, para toda a equipe. Até então, ele vinha acompanhando cada passo do projeto, sempre muito animado em ver seu sonho realizado: sua obra organizada. Foi bastante desafiador, comovente, emocionante. Mas conseguimos manter a união e trabalhar remotamente, montando nossa metodologia e amarrando ainda mais a nossa linguagem e conceito até chegarmos ao resultado de hoje: site no ar, com 5.600 itens catalogados e muito mais para reunir e produzir.

O projeto é definido a um tempo como acervo cultural e como rede que produz e divulga arte e conhecimento. Fale sobre esses dois campos: o que está sendo feito em cada campo e o que vocês têm em mente para o futuro.

Quando falamos em acervo cultural, dizemos diretamente sobre a organização da obra de Sérgio Ricardo e o que se fala dela. É cultural porque, inevitavelmente, falaremos de cultura brasileira, uma vez que essa trajetória gigante atravessa sete décadas de manifestações fundamentais, que construíram a nossa identidade cultural como país e como sociedade até os dias de hoje. Para você ter uma ideia, já acervamos músicas, desenhos, textos, matérias de jornal, fotos e vídeos, e ainda temos diversas partituras manuscritas, fitas inéditas para transcrever, pesquisas ainda a ser desenvolvidas. Toda uma sorte de pensamentos, reflexões e criações que formam a obra e contam sobre todos os contextos culturais em que ela está inserida.

Quando falamos dessa rede que produz e divulga arte e conhecimento, estamos afirmando que preservar e revisitar a memória do que foi vivido leva a gente também a construir novas falas e olhares a partir dessa obra e dos temas que ela evoca: multilinguagens, realidade brasileira, coletividade, empatia, afetos, enfrentamento, abertura de caminhos para o novo. A obra de Sérgio Ricardo convoca a gente para esse novo, essa busca, o tempo todo, em tudo. Então, as nossas motivações e propósitos em Sérgio Ricardo – Memória Viva são exatamente as motivações do artista; queremos falar e fazer além do acervo da obra, e ancorados justamente por ela! Queremos seguir contribuindo na construção de uma identidade cultural brasileira, como ele sempre fez, propondo conversas, trazendo possibilidades de espaço para que as manifestações artísticas circulem, se mostrem.

E como a gente faz isso na prática? No site, temos o Expressões, que é um espaço colaborativo, no qual fazemos uma curadoria e divulgação de manifestações que recebemos de quem quiser participar, em qualquer frente de expressão artística, que tenha como base as convocações da obra do Sérgio. As nossas redes sociais também fazem essa divulgação.

Neste próximo ano, queremos ainda promover conversas sobre cultura, sobre questões sociais que perpassam a obra (e são muitas!), sobre linguagens, mostras de filmes, conteúdos analíticos sobre a obra de SR, sempre com a ideia de propagar conhecimento e estímulo para novas criações. A ideia é manter a gente em movimento, culturalmente vivos!

Desde o nome do projeto temos um conceito interessante – memória viva. O que seria uma memória não viva? O que é tornar a memória viva? Como realizar esse ato?

Uma memória não viva, para nós, seria o uso mais tradicional do acervo, como um depositário e organização dos materiais. Conceitualmente, seria um olhar mais estático, uma atenção focada no que “foi”, nessa ideia de passado que, diga-se de passagem (com o perdão do trocadilho), é um caminho que o próprio Sérgio Ricardo jamais tomou para sua vida. Imagine, mais de 70 anos em múltipla e incessante atividade cultural, mesmo com todas as dificuldades e tentativas de silenciamento. Então, a nossa memória só pode ser viva, contínua – uma memória ativa, um passado de ensinar e aprender para seguir sendo presente e fazendo futuro.

A vida aqui está nessa atuação dinâmica, no sentido do fazer coletivo, de continuar falando sobre a obra e sobre o seu contexto: a cultura e a identidade brasileiras. É “memória viva” porque se renova a cada reinterpretação, a cada revisitação. Queremos realizar isso estimulando a criação, o debate, a releitura, a renovação. Desde sempre o nosso “hino” do projeto é a música “Vou renovar”, em cujos versos Sérgio convoca a gente a essa atuação e afirma: “Se ninguém cantar comigo, eu sozinho não consigo nem cantar nem renovar”. 

Parece-me que um ponto importante nesse projeto é a transversalidade, tanto porque Sérgio foi um multiartista quanto porque em rede se mobilizam várias especialidades. Como você vê essas relações interdisciplinares, abertas, no Memória Viva?

Sim, certamente a transversalidade é um ponto muito importante no projeto! Para começar, a criação de SR é múltipla – em formas de expressão e temáticas abordadas. O que aprendemos a cada dia com todas as mensagens contidas na obra é que a união de singularidades faz um plural mais forte, que juntos somos mais criativos e mais capazes de realizar projetos.

A equipe fixa de Sérgio Ricardo – Memória Viva é multidisciplinar, e a forma como construímos o projeto é coletiva. Há núcleos diversos de linguagens específicas (música, artes visuais, audiovisual, textual), e as integramos sempre que necessário. Entendo que essa interdisciplinaridade é o motor para a manutenção do projeto, inclusive estimulando essa abertura com as pessoas que desejam colaborar com a gente. Vamos conhecendo tão profundamente a obra que começam a surgir ideias de novos conteúdos, de pautas para futuras ações e releituras que inspiram sempre a continuar levando esse legado adiante. Atravessando paredes, sendo ponte, fluindo nos temas da atualidade, construindo e fortalecendo a rede exatamente como nos ensinam as mensagens de SR.

Para terminar, como você apresentaria Sérgio Ricardo a alguém que não conheça a sua obra? Por que, hoje, devemos nos voltar para o seu trabalho? O que ele pode nos dizer? 

Tenho tido experiências muito positivas de pessoas jovens que aleatoriamente nos procuram para dizer que se surpreenderam ao “descobrir” Sérgio Ricardo. E sempre vem junto uma pergunta meio espantada: “Mas por que eu não conhecia isso antes?”.

Essas indagações – que ouço há muito tempo – são a prova da relevância de colocar o trabalho dele em evidência. Sua comunicação, sofisticação, envolvimento e excelência são evidentes a quem se depara com sua obra. SR tem uma trajetória artística única, tendo sido expoente de diversos movimentos fundamentais da cultura do país, como a bossa nova e o cinema novo. Sua visão sobre a realidade brasileira, sua inquietação e indignação, sua personalidade forte, bem-humorada e coerente são inspiradoras para qualquer pessoa que queira se expressar artisticamente, tendo plena consciência e conexão com o mundo em que vive.

Em seus textos, poemas, músicas, filmes, ele nos situa e nos atualiza o tempo todo: “Se a gente não se juntar, não vai adiantar nada” (filme Esse Mundo É Meu); “Um pobre ajuda outro pobre até melhorar” (música "Zelão"); “Tenho pra minha vida: a busca como medida, o encontro como chegada E como ponto de partida” (música "Ponto de partida"); “Sem cultura, um povo não se adivinha” (texto "Estirpe eliminada"); “Somos o quê? Paisagem?” (filme Pé sem Chão).

Apresentaria Sérgio Ricardo como um dos artistas mais importantes do Brasil, que nos provoca uma busca contínua como indivíduos e coletividade. Que, a qualquer época, nos convoca a pensar sobre quem somos (e quem queremos ser) no tempo presente. Em dias como os que vivemos hoje, especialmente em nosso país, nada me parece mais importante do que refletir e agir pela construção dessa identidade.

Veja também