Ricardo Ramos Filho realça o universo imaginativo de seu avô, Graciliano Ramos
04/06/2019 - 14:55
por Heloísa Iaconis
Durante o mês de maio, o sertão chegou ao Itaú Cultural: seja por meio de peças ou com o lançamento da edição número 25 da Revista Observatório Itaú Cultural (publicação disponível neste link), o Brasil profundo espalhou-se pela programação do instituto. O Cantinho da Leitura não ficou de fora e dedicou o mês a Graciliano Ramos (1892-1953), autor que tão bem investigou as muitas securas que podem atingir uma vida. Natural de Quebrangulo, cidade do agreste de Alagoas, o criador da cachorrinha Baleia incursionou pela literatura infantojuvenil com A Terra dos Meninos Pelados (1939), narrativa sobre Raimundo (garoto careca, dono de um olho azul e outro preto), e Histórias de Alexandre (1944), com 15 causos de um homem meio caçador, meio vaqueiro, todo ele feito para conversas.
O gosto pelos pequenos leitores atravessou gerações e, com Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano, o engenho criativo volta-se, de fato, para crianças e adolescentes: também escritor, como o avô e o pai (o contista Ricardo Ramos), ele inventa personagens que dialogam com o desenvolvimento meninil, como João Bolão. Com volumes publicados no exterior, de Portugal aos Estados Unidos, atua ainda na produção de eventos culturais e em júris de prêmios literários, além de ocupar a vice-presidência da União Brasileira de Escritores (UBE). Já na esfera acadêmica, estuda o trabalho do velho Graça focado em quem está começando a vida. E é essa produção que norteia a entrevista a seguir, uma conversa em que Ricardo fala da contribuição de Graciliano (e da dele próprio) para esse mundo fantástico de Raimundos, gato que canta de galo, cravo que briga com a rosa.
Na infância, o que você costumava ler?
Sempre li bastante, até porque, como filho de escritor, fui estimulado, tive muita mediação de leitura desde cedo. O primeiro livro inteiro que li, aos 7 anos, foi Reinações de Narizinho (1931), de Monteiro Lobato. Gostei de ler e, então, desembestei. Em casa, tínhamos um acordo: podíamos ver televisão até as 8 horas da noite e, depois, deveríamos dormir. Caso ficássemos acordados na cama, porém, teríamos de ler. Com 15, 16 anos, migrei para a literatura adulta (russa, norte-americana, francesa).
Quando e como foi a primeira vez que você leu Graciliano Ramos?
A leitura de Graciliano Ramos não foi incentivada. O meu pai tinha uma ideia, que acho certa, de que tínhamos de ler Graciliano quando fôssemos, meu irmão e eu, leitores formados. Aos 16, li Vidas Secas (1938) e houve uma modificação na imagem que eu tinha dele: do avô, o homem de quem a minha avó relembrava com amor, passou a ser um artista pelo qual comecei a ter uma reverência. Passei a reconhecer qualquer linha feita por ele sem a necessidade de assinatura. Isso me instigou, surpreendeu, provocou. Depois veio Angústia (1936), uma leitura difícil, e os demais. Adoro tudo de Graciliano.
Qual é a sua opinião sobre A Terra dos Meninos Pelados?
Li quando adulto e gostei daquele texto um tanto quanto alegórico. Mas, confesso, quando jovem, outras coisas de Graciliano me chamavam mais atenção. Eu fui me apaixonar ao ver uma montagem teatral do título e, ao reler a obra depois da peça, apaixonei-me mais. No mestrado, na Universidade de São Paulo (USP), quis entender se existia um preconceito acerca da parte infantojuvenil de Graciliano. Comparei A Terra dos Meninos Pelados com São Bernardo (1934) e procurei ver se ambos mantêm força semelhante. Trata-se do mesmo Graciliano, do mesmo engajamento político, do mesmo escrito enxuto, da mesma obsessão por uma linguagem extremamente cuidada.
Para você, em que medida se deve ter empenho político-social nos enredos infantojuvenis?
Acho importantíssimo que haja isso, desde que com certo cuidado. A literatura infantil e juvenil não foi feita para ensinar. Antes de mais nada, o leitor precisa ter ali uma diversão, adquirir o hábito da leitura. Qualquer obra literária, para ser de qualidade, precisa ter uma porção simbólica estruturada, assim como uma social, além de uma linguagem correta. Quando faço referência a um engajamento político, não digo sobre ser de esquerda ou de direita – mas, sim, sobre mostrar o contexto. E, se necessário, colocar-se dentro desse contexto.
A sua formação inicial foi na área de exatas. Por que esse caminho?
Por medo. Venho de uma família de escritores e, por isso, tinha medo de não corresponder às expectativas. Considerava que ser escritor naquele lar era falta de imaginação e, sem inventividade, nunca seria escritor. Havia também aquele jeito adolescente de querer o diferente. Eu me estrepei em matemática: teimoso, acabei por me formar (porém, demorei muito para concluir o curso). Não era uma opção trabalhar com matemática e, no meio disso, percebi que não dava para fugir da escrita. Não foi fácil essa descoberta: elaborei uma ficção e, nessa época, o meu pai estava vivo. Eu já havia tido experiências de mostrar prosas minhas ao meu pai, e ele, sincero, desaprovava. Até que apresentei o meu primeiro livro a ele, que gostou, mas salientou que, por ser o meu pai, a avaliação não era isenta o suficiente. Após a aprovação da editora, a publicação aconteceu – entretanto, o meu pai havia morrido no mesmo ano.
Por que escrever para crianças e jovens?
Tenho duas explicações e não sei qual é a mais verdadeira. Uma é que segui para a área infantojuvenil porque nem Ricardo nem Graciliano exploraram esse campo. Achei que seria menos cobrado. A outra justificativa que dou é que, mesmo sendo um leitor assíduo, foi dos 10 aos 16 anos que li com uma paixão enorme. Virava a noite lendo e, de manhã, era um caos para ir para a escola. No fim, creio que foi um pouco dos dois motivos.
Como se deu a construção de Se Eu Não me Chamasse Raimundo (2013), livro que se relaciona com A Terra dos Meninos Pelados?
Nasceu de uma história tão bonita. Administro, com a minha tia, que já está velhinha, uma empresa que cuida do legado de Graciliano Ramos. Recebemos, em dado dia, um pedido para nomear o pavilhão de um hospital de câncer de A Terra dos Meninos Pelados. Os pacientes tinham a cabeça raspada por causa do tratamento. Dessa situação surgiu a trama: um garoto chamado Raimundo, nome igual ao herói de Graciliano, está com câncer e, ao saber que estava curado, recebe a notícia de que a moça de que ele gosta morreu. A morte é abordada de forma delicada. Tenho carinho pelo resultado.
Como você enxerga a literatura infantojuvenil nacional hoje?
No Brasil, tudo vai muito mal atualmente, menos a literatura. A literatura vai bem, muito bem. Participo de júris de premiações e há romancistas de qualidade. No âmbito infantojuvenil, temos uma safra ótima: Eva Furnari, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo… E ilustradores excelentes. De modo geral, a literatura atravessa um momento positivo.
Como você percebe o sertão na obra de Graciliano Ramos?
Graciliano permanece atual e querido. Se você postar alguma frase dele no Facebook, verá que será bastante curtida. As pessoas respeitam, admiram, amam Graciliano. E a obra dele vai além do regionalismo. Existe o sertão nordestino ali, mas esse lugar poderia ser na Síria, na Nigéria, em qualquer local.