por Heloísa Iaconis

Foram 12.982 inscritos no edital Arte como Respiro destinado à literatura. Desse total, 200 trabalhos compõem a lista de escolhidos, sendo 25 textos falados e 175 da categoria escrita. E é nesse segundo grupo que estão Adélia Danielli e Magaiver Santos. Ela, do município de Currais Novos (RN), poeta, produtora cultural e feminista. Ele, de Manaus (AM), poeta-músico, músico-poeta. Os caminhos de ambos se cruzam não só nessa seleção: os dois artistas sabem da força de suas raízes e, de formas distintas, incorporam-na em suas obras. A mãe dela. O pai dele. Adélia e Magaiver encontram, no início e no agora, apoio para externar suas vozes e tornam suas trajetórias exemplos de que a arte, mesmo quando realizada de modo individual, traz um pouco daqueles que vieram antes.
           
A vida significa tanto

Assim começa o poema de Adélia Danielli: “A vida significa tanto”. Quem há de discordar? Durante os primeiros meses de restrições em razão da pandemia, a autora passou a querer, entre outros desejos, ir à praia. Enfiar os pés lá no profundo da areia. De tal maneira veio a espera pelo dia em que, enfim, colocaria frente a frente com a maresia, de tal maneira veio essa espera que, ao fazer versos para o concurso, Adélia resolveu ocupar a orla através do papel. Já era noite, véspera do término do prazo para se candidatar no edital. Às 22h30, havia colocado os filhos para dormir e, então, concentrou-se no arranjo das palavras. O que dizer? E, principalmente, como dizer? Tomou a madrugada o exercício de imaginar a existência pós-covid-19. “Foi interessante esse meu processo de criação. Deixei-me levar por uma esperança e, simultaneamente, por aquilo que ainda era, naquele momento, apenas temor de perder alguém próximo”, relembra a poeta. Horas a revolver sentimentos com o objetivo de, desse turbilhão, jorrar estrofes capazes de captar a ambivalência deste tempo. Até que, às 4h da manhã, pronto: pronto estava o trabalho. Enviado. Restava torcer.

Torcerem, no plural. Maria Cleonice Souza, mãe de Adélia, sempre esteve ao lado da filha, torcendo e quase assumindo, por vezes, uma coautoria dos textos, como aconteceu no caso da produção selecionada. Não, Maria Cleonice não elaborou uma rima sequer, tampouco opinou a respeito do conteúdo gerado pela escritora. Não se trata desse tipo de colaboração. A parceria firmou-se, de fato, graças ao suporte materno em outra área: para Adélia poder se focar no poema, sua mãe cuidou de seus filhos, enquanto ela descansava após uma noite em claro. “Trabalhei tranquilamente porque sabia que as crianças ficariam com a avó e eu conseguiria dormir quando acabasse tudo”, conta a artista. A combinação de talento e alicerce descobriu-se vitoriosa em 9 de junho de 2020, oportunidade em que comemoraram, Adélia e Maria Cleonice, o resultado. Essa alegria, rara em um período pandêmico, um verdadeiro respiro, marcou a última celebração das duas juntas.

Em 16 de julho, Maria Cleonice Martins de Souza faleceu, vítima do coronavírus. Adélia e seu pai também adoeceram, mas se recuperaram. “Não sou uma pessoa mística. Hoje, porém, relendo o que escrevi para o edital, percebo ali um recado para mim mesma. A mensagem se concretizou: logo em seguida à perda da minha mãe, fui à praia, enterrei os pés na areia. Não era o fim da pandemia, continua não sendo. Era, na realidade, um recomeço meu”, destaca a poeta. Um recomeço e a certeza de que a vida, apesar da morte (ou por causa dela), significa tanto. Com o intuito de homenagear àquela que foi seu amparo, além de todos os que morreram em virtude dessa doença, Adélia dedicou, na versão definitiva, o poema a Maria Cleonice e aos demais que partiram durante esta pandemia. A homenagem, cheia de amor, é o número final de uma dança que pede cura para a dor.

Entre dois espelhos

Magaiver Santos anotou: “Há verbos que só se conjugam entre dois espelhos”. Um exemplo: dedilhar. Desde pequeno, mora nele o gosto por música. Aos oito anos, arriscou-se em um instrumento pela primeira vez: no violão de seu pai, tirou umas notas e, dali em diante, não parou mais. Aos doze, tocou uma canção inteira e, na adolescência, já musicava seus próprios versos. Nasceu nessa época, aliás, a união do ímpeto musical com a verve poética, dupla que o acompanharia estrada afora. De letra em letra, o compositor entrou para a cena manauara e, atualmente, integra as bandas Casa de Caba e Sindicato dos Artistas Carentes, apresentando-se em bares – rotina bastante alterada devido à suspensão social. Impossibilitado de realizar shows, o cantor decidiu se inscrever na ação do Itaú Cultural e, para isso, revisitou linhas produzidas em 2017.

Cortou frases, reformulou ideias, achou um cenário diferente para o antigo escrito. “Mudei algumas coisas e, para a minha surpresa, prefiro o texto recente. Sou ateu, mas quis falar sobre um deus que está perto da gente, no nosso cotidiano, nas relações humanas”, explica Magaiver. Trazer o divino para o cerne de seu trabalho foi um jeito de vislumbrar um futuro melhor. Conhecedor de chuvas de vidro e do entre-entre da vida, o poeta-músico, músico-poeta permitiu-se confiar no amanhã, sem, contudo, escamotear o susto, o medo, o estranhamento de agora. Como certos verbos, Magaiver lida com espelhos: os males e a beleza, o violão do pai e os degraus adiante, os vários tempos nele unidos.

[Os áudios aqui reproduzidos são de autoria de Adélia Danielli e Magaiver Santos. Adélia declama seu poema selecionado pelo Arte como Respiro. Magaiver lê versos de um texto seu diferente do escolhido pelo edital. Ouça as vozes deles].

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