por Isabel Teixeira

“O ‘Arena Conta’ não é essa casa, somos nós que contamos, é a nossa interpretação dos fatos. O Arena está onde eu estiver, dentro de mim. Falar do Arena é falar da minha vida porque minha vida se confunde com isso tudo. Tudo que eu faço, penso, tento, eu desenvolvi aqui nesse quadradinho, nesses camarins.”
Lima Duarte
(Arena Conta Arena 50 Anos – novembro de 2004)

Lima Duarte em O Tartufo, em 1964, no Teatro de Arena (imagem: Autoria desconhecida / Acervo Biblioteca Jenny Klabin Segall/Museu Lasar Segall/IBRAM/Ministério do Turismo)

O Arena que contou o Arena

No ano de 2004, junto à Cia. Livre de Teatro, coordenei o evento Arena Conta Arena 50 Anos. Na ocasião, entrevistei a maioria dos integrantes desse teatro que fez a história girar de 1953, data de sua fundação, até 1971, período em que o Arena teve de se adaptar radicalmente ao embrutecimento da ditadura militar, sendo obrigado a sofrer uma espécie de descaracterização para sobreviver. Foram vários integrantes que, em diferentes períodos, teceram juntos a história ímpar do Arena. Augusto Boal, na ocasião do evento em 2004, disse que os processos psíquicos da memória e da imaginação não são dissociáveis. Cada um contaria o seu Arena e todas as versões seriam as oficiais. De fato, foi o que aconteceu. Afinal, o Arena não foi só um dos movimentos teatrais mais importantes deste país; assim como não se resumiu apenas àquele espaço singular da Rua Teodoro Baima [no centro de São Paulo]: o palco circular do teatrinho com capacitação máxima para cerca de 90 espectadores, que mudaria os rumos do teatro brasileiro. O Arena foram e são as pessoas que contam e contaram essa história. O que tento reproduzir neste texto é uma dessas vozes, uma voz muito familiar, que já está impregnada na alma do povo brasileiro.

Na Arena

No dia 27 de outubro de 2004, Lima Duarte entrava no palco do Teatro de Arena da Rua Teodoro Baima para nos contar o seu Arena. E muitos sabem que ninguém melhor do que o próprio Lima para contar sua história. Mas e o Arena? Será que o grande público sabe que Lima foi integrante desse importante teatro por quase dez anos? Vamos à história.

Em 22 de fevereiro de 1958, a peça Eles Não Usam Black Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, havia estreado com o intuito de ser uma peça de despedida. O Arena não ia muito bem economicamente e José Renato dirigiu o que ele achava ser o último suspiro do teatro que ele havia inaugurado em 1953. Contrariando as expectativas, a peça revolucionou as bases do Arena e do teatro nacional. Inaugurava-se uma nova fase com o compromisso de explorar a dramaturgia e a interpretação tipicamente brasileiras. O  grupo, então, procurava se aprofundar na psicologia do povo sem caricaturas, enraizada no que havia de mais verdadeiro. O espectador passou a encarar uma imagem que pertencia ao seu cotidiano. A geração de artistas que ocupava o teatro nesse período provinha, em sua maioria, de grupos estudantis comprometidos com o viés político e social do teatro e da arte em geral. Augusto Boal cria o Seminário de Dramaturgia e entre 1958 e 1961 vários autores nacionais ganham a arena. Grande parte desse movimento deve-se ao seminário. Muitos que estavam começando viriam para ficar, como Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Freire, Benedito Ruy Barbosa, Flávio Migliaccio, Augusto Boal e Chico de Assis. Este último foi o grande responsável por abrir os caminhos que trariam Lima Duarte ao centro da arena. Ator, diretor e dramaturgo, Chico tinha conhecido Lima nos bastidores da TV Tupi e já fazia parte do grupo do Arena desde sua estreia na peça A Mulher do Outro, em 1958.

Em 1961, Chico de Assis escreveu O Testamento do Cangaceiro, encerrando a primeira fase de autores nacionais no Arena, sob a direção de Augusto Boal. Na terceira página do programa original da peça, há uma fotografia onde um jovem ator de terno e gravata encara uma máscara teatral que parece ter a boca pronta para engoli-lo. Na legenda, pode-se ler: “participação especial de Lima Duarte”. Foi Chico de Assis quem insistiu com Lima para que atuasse, pois intuía que ele teria muito a contribuir com o Arena. Nas palavras de Lima: “Um dia, eu me lembro desse dia, um belo dia, com certeza belo, foram ao Sumaré [bairro da sede da antiga TV Tupi de São Paulo] falar comigo. Foram o Boal, o Guarnieri, o Chico de Assis, todo Arena foi ao Sumaré para me convencer a participar do Arena. […] a minha vida, francamente, se divide em antes e depois do Arena”. Foi realmente um acontecimento. Lima mergulhou num estilo de trabalho ainda desconhecido para ele, com laboratórios, trabalhos de mesa, pessoas e ideias novas e passou praticamente a morar no Teatro de Arena. Entre um ensaio e outro, entre uma sessão e outra, era no andar de cima do prédio de dois andares que passava o tempo estudando, jogando uma partidinha de futebol (o espaço era minúsculo), de truco, sete e meio… Chico de Assis certa vez declarou: “Houve um tempo em que o Ary Toledo, o Lima Duarte, o Paulo José e eu jogávamos truco enquanto não tínhamos nada para fazer. Sistematicamente começou a se formar uma plateia. Aparecia um, depois dois, três… Porque tanto o Ary quanto o Lima davam um show extraordinário de truco. De repente havia uma plateia enorme, o jogo de truco virou um espetáculo lá em cima”. Lima chegou e encantou. O que era para ser uma participação em 1961 acabou durando até 1971.

Lima Duarte em cena da peça O Testamento do Cangaceiro, em 1961 (imagem: Acervo UH / Folhapress)

O Arena: de Mamanguape à Broadway

Quando Lima chegou ao elenco do Arena, em 1961, o grupo passava por um período de autocrítica rigorosa. Depois da estreia e de O Testamento do Cangaceiro, a linguagem foi reformulada, ampliando os canais de comunicação com o público popular, sem abandonar o relacionamento com os espectadores do centro da cidade. A ideia era encenar obras clássicas de reconhecido valor artístico mantendo ao mesmo tempo um compromisso claro na batalha entre opressores e oprimidos de todos os tempos. Essa passagem para um período de adaptação dos clássicos foi precedida pela encenação de Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertold Brecht, sob a direção de José Renato. A peça foi escrita por Brecht “para ser representada em cima de caminhão”, como disse Lima Duarte. Uma peça-panfleto. Lima fazia o papel de Pedro Jáqueras, o operário que em determinado momento diz: “Sempre ouvi dizer que os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue”. O teatro pode ser uma arte efêmera, mas essa fala e essa cena, assim como a peça lindamente encenada por José Renato, sobrevivem na memória de quem viu. Ainda nesse período de “nacionalização dos clássicos”, em 1964, o Arena encenou Tartufo, de Molière, sob a direção de Augusto Boal. Lima Duarte fazia Orgon e Tartufo era a personagem de Gianfrancesco Guarnieri. Muitos que atuaram na peça e outros tantos que a viram dizem que naquela encenação foi feita a maior pausa da história do teatro mundial. Era um diálogo silencioso entre Guarnieri e Lima. Durava mais do que cinco minutos e eles não perdiam o público nem por um segundo.

Revolução na América Latina, peça de Augusto Boal, havia estreado em setembro de 1960, sob a direção de José Renato. Alguns anos depois da estreia, a peça excursionou e Lima Duarte substituiu Nelson Xavier; foram se apresentar para as ligas camponesas. Lima conta que a excursão pelo Nordeste foi das coisas mais lindas que ele viveu no Arena. Ele se lembra com brilho nos olhos de uma canção que soava como um sol para as grandes plateias:

Passo a vida trabalhando, dando duro no batente,
A comer de vez em quando, isso é vida, minha gente?
Se ser livre é passar fome,
Não quero ser livre não
Tó que eu sou livre!

Em Mataripe [região de São Francisco do Conde, Bahia] não existia teatro e Lima conta que alugaram dois caminhões. Baixaram as bandeiras, fizeram da boleia uma coxia e da carroceria um palco. Em outra ocasião, a trupe viajou de ônibus de Campina Grande até Natal durante 14 horas. Passaram por Mamanguape, na Paraíba, e estavam com uma fome desgraçada, sem nada para comer. Pararam numa pensão e a dona ofereceu frango. Todos perceberam que o frango tinha uma junta muito grande e a carne muito escura. Até que Milton Gonçalves anunciou: “Isso é gato. Rapazes, estamos comendo gato por frango, com certeza”.

Arena Conta Zumbi foi, sem dúvida, a peça mais emblemática de um tempo de luta e resistência. Estreou em 1º de maio de 1965 e foi sucesso de público e crítica. O que Arena conta é a história de Zumbi dos Palmares, mas não havia na montagem a preocupação em reconstituir os fatos acontecidos durante determinada época da história do Brasil. Privilegiavam-se as cenas imaginárias que poderiam ter uma semelhança com o presente e a temática se concentrava em torno do tema da resistência. Sábato Magaldi, importante crítico brasileiro, escreveu sob o impacto causado pela peça: “Impressionou-me a violência da montagem. Nada houve entre nós, até aquele momento, que significasse uma condenação tão radical da ditadura instaurada pelos militares. […] A ação se desenvolve por meio de flashes, em que surgem apenas as personagens necessárias ao progresso da história”.

Em 13 de dezembro de 1968, o Brasil sofria uma nova alteração em seu rumo político, radicalizando ainda mais a repressão da ditadura. O Ato Institucional Nº 5, entre outras coisas, atualizava as disposições governamentais em relação às formas de manifestação e expressão, impossibilitando qualquer vislumbre de liberdade. O Teatro de Arena foi levado a suspender as criações internas e tratou de excursionar pelo exterior. A convite da entidade norte-americana Theatre of Latin America, o elenco apresentou Arena Conta Zumbi, em agosto de 1969, no Saint Clement’s Theatre de Nova York. Essa turnê foi sucesso de público e crítica. Como escreveu Henry Raymont, no New York Times: “A company of fire passion, noble commitment and enormous skill” [“Uma companhia de flamante paixão, nobre compromisso e enorme habilidade profissional”].

Em março e abril de 1970, realizou-se nova excursão para os Estados Unidos, o México, o Peru e a Argentina. Uma peça ainda inédita no Brasil acrescentou-se ao repertório: Arena Conta Bolivar. A temporada do México, segundo Lima, foi “um imenso fracasso, ninguém tomou conhecimento, detestaram”. Tiveram que mambembar para pagar a excursão: Potosi, Morelia, Guanajuato… Tudo em companhia de um secretário chamado sr. Quesada. Lima Duarte fazia uma cena emblemática em Arena Conta Zumbi, na pele de Domingos Jorge Velho, um bandeirante facínora que, entre outras coisas, foi chamado para liquidar Palmares. Lima dizia o texto se coçando, coçando o saco como se fosse um animal, até chegar ao orgasmo. Era uma cena chocante que impressionava muito. O sr. Quesada dizia: “Sr. Lima, nosotros vamos trabajar en Puebla, és una ciudad mui reaccionária… Sin pelotas, por favor”. Em outras cidades, mais liberais, o sr. Quesada liberava as pelotas… O México marcou Lima Duarte para sempre como sinônimo tanto de “sin pelotas” como de “con pelotas”.

Cena da peça Arena Conta Bolívar, em 1970, no Teatro de Arena. Na imagem, ao fundo: Anunciação (bateria), Renato Consorte, Benê Silva, Hélio Ari, Théo (violão), Fernando Peixoto, Nenê (contrabaixo). Em 1º plano: Cecília Thumin, Zezé Motta, Lima Duarte e Isabel Ribeiro (imagem: Derly Marques)

Nos anos de 1970 e 1971, a sede do Arena em São Paulo resistia a duras penas. O visível esvaziamento do público e o estreitamento da repressão política geraram uma crise econômica sem precedentes. Augusto Boal havia sido preso no dia 2 de fevereiro de 1971 e permaneceu um mês no Dops, em cela solitária, além de passar quase dois meses no presídio Tiradentes. Sua trajetória a partir daí o levou ao exílio, onde permaneceu até sua volta, alguns anos depois da anistia, em 1986. Depois de 1971, com a infraestrutura abalada economicamente, o Arena se dissolve como grupo de teatro e passa a funcionar como uma casa de espetáculos que acolhe produções independentes para sobreviver. No dia 3 de junho de 1977, a sala da Rua Teodoro Baima, reformada, transformou-se no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, e está lá até hoje.

Mas qual foi realmente o fim do Arena? Na minha opinião, o teatro teve muitos fins. A cada partida de um de seus integrantes, era um Arena que acabava. Em 1971, Arena Conta Zumbi saiu em turnê pela França e foi apresentado em Nancy, Toulouse e, por fim, Marseille. Foi ali que Lima Duarte se despediu. Passo a palavra para esse ator-poeta que já faz parte do nosso imaginário coletivo como se fosse amigo próximo. É Lima quem conta: “O momento mais melancólico da minha vida, que eu me lembre, foi o espetáculo em Marseille. Foi o último espetáculo do Arena. Marseille é onde acabam as coisas que sabem acabar. Ali foi o fim do Arena. Acabou na minha frente. Terminamos Zumbi e saímos. Na porta do teatro sempre acontece aquele lance: ‘Pra onde você vai?’. ‘Eu vou para Toulouse’, disse o Antonio Pedro. A Bibi Vogel disse: ‘Vou voltar para São Paulo para a novela do Geraldo Vietri e você?’. ‘Eu vou também’. Todo mundo foi embora. Eu fiquei olhando, e o Arena sumiu, oculto pelas brumas mediterrâneas de Marseille. Foi acabando, acabando e nunca mais foi aquele Arena. Mas continua muito vivo dentro de cada um de nós, norteando a nossa vida”.

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Isabel Teixeira é diretora, dramaturga, pesquisadora e atriz formada pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Fundou a Cia. Livre de Teatro, na qual também realizou trabalhos como atriz. Na mesma companhia, em 2005, coordenou o projeto Arena Conta Arena 50 Anos, vencedor dos prêmios Shell e APCA. Em 2009 ganhou o Prêmio Shell de Melhor Atriz, além de outras indicações.

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Este texto foi publicado originalmente no site da Ocupação Lima Duarte. Lá você encontra outros materiais inéditos, além de entrevistas exclusivas e fotografias que contam a história do homenageado.

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