por William Nunes de Santana
“Dizem que o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta; a gente entrou no hospital porque a porta estava aberta e era um campo fértil de trabalho”, comenta Val Pires, palhaço, ator e integrante do Doutores da Alegria, primeiro grupo de palhaços no Brasil a entrar em hospitais públicos para estar ao lado de crianças, adolescentes e outros públicos em situação de vulnerabilidade e risco social. Formado por Wellington Nogueira há 30 anos, hoje é referência para outros grupos que seguiram o mesmo caminho de levar a arte da palhaçaria para o campo da saúde. “Nos hospitais a gente sempre ouve: ‘Meu primo é doutor da alegria’, mas, na verdade, ele trabalha em um grupo semelhante”, diz Val.
Ele, que também é conhecido como o palhaço Dr. Valdisney, se juntou ao Doutores da Alegria em 2004, depois de passar por uma seleção. Desde então, fazer parte desse processo se tornou um aprendizado e um aprofundamento enorme. São duas vezes por semana visitando hospitais, trabalhando no mínimo quatro horas por dia – ou enquanto houver crianças, como ele mesmo ressalta.
“O palhaço não é nada mais, nada menos do que ele mesmo, do que ele sente. Por isso o palhaço trabalha com o ridículo, se expondo”, reflete.
Qual é a importância do riso e do humor para a saúde? Como lidar com cargas tão emotivas e ainda assim fazer o outro rir? Confira abaixo os destaques da entrevista com Val Pires.
O humor, o riso e a saúde
"O Doutores da Alegria tinha um lema: 'A alegria é o melhor remédio'. O que sinto com a palhaçaria nesse campo da saúde – que é uma coisa tão carregada, um momento tão fragilizado de qualquer pessoa que frequenta um hospital – é que, através da arte, a gente consegue acessar lugares que, às vezes, até quem trabalha no hospital não consegue.
O palhaço tem esse lado humano aflorado, que está à frente de tudo. Então, quem está hospitalizado por algum motivo já está tão exposto, o lado humano dele está tão frágil, que acho que esse encontro se dá pela fragilidade. A arte tem esse poder de tocar, de chegar e mexer nesse lado humano que está ali entregue e frágil mais do que nunca, mais do que em qualquer outro lugar."
Lado humano mais sensível
"Durante a semana, nós treinamos muito e você fica muito tempo de palhaço, e isso traz bagagem, material e experiência para poder lidar com situações de diversos tipos. Trabalhar em hospital é trabalhar com o bebê que está nascendo e com a criança que está morrendo – o que não é natural. Além da bagagem como palhaço e de improvisação, isso proporciona esse lado humano mais sensível para desenvolver o trabalho."
Palhaço de circo, palhaço de hospital
"A minha primeira formação é de ator. A maioria tem uma primeira formação como ator e depois se aprimora como palhaço. O palhaço de circo pode se sair maravilhosamente bem no circo, mas não no hospital, assim como um palhaço de hospital pode se sair bem no hospital e, no circo, não se dar bem com a forma de linguagem.
No circo você vai falar com mil, 2 mil pessoas. No hospital às vezes você fala para uma criança que está na cama. Nós atuamos com a menor plateia do mundo. Acho que a grande diferença está na sutileza, nas coisas pequenas. O palhaço tem essa imagem grandiosa – a maquiagem é muito grande, a roupa é grande, porque, quando se tem uma plateia muito grande, você precisa aparecer. No hospital você puxa isso para um universo pequeno, mas essa coisa de você estar vivo e de estar respirando o que está fazendo e aquilo ser verdadeiro, tanto faz ser no circo, no teatro ou no hospital."
Veja também:
>> Circo só é bom se tiver um bom palhaço
Palhaços em tablets
"O nosso trabalho parou quando tudo parou. A gente não pôde entrar no hospital, então nós começamos a desenvolver o atendimento virtual. Levamos um tablet para os profissionais que trabalham no hospital e essas pessoas iam nos quartos nos levando dentro de tablets. Somente no finalzinho do ano passado a gente conseguiu voltar presencialmente. Voltou um palhaço que levava o outro em tablets – tinha esse híbrido de um palhaço carregando outro. E pouco depois nós voltamos todos, na maioria dos hospitais. Agora, neste ano, em alguns hospitais a gente teve de voltar ao atendimento híbrido.
Temos uma quantidade enorme de material de vídeos criados na pandemia – acho que vai, de repente, até virar um filme ou alguma coisa assim."
Contato presencial com o outro
"Quando entramos para atender uma criança, às vezes não sabemos o que ela tem. É até melhor não saber. Nós temos essas informações, mas não carregamos conosco. Mas há uma coisa: se você entrar em uma situação ruim, é só olhar no olho da criança. Sempre falo isso para os médicos que trabalham no hospital – o mais importante é você olhar no olho da criança. Isso reverte qualquer problema.
A gente entra com todas as coisas prontas para o jogo, mas só se a criança permitir. Se ela estiver com medo ou não quiser que a gente entre, não vamos. Nós somos os únicos profissionais do hospital que, se a criança não quiser, não entram no quarto – ela não pode falar isso para uma enfermeira ou para um médico."
Como estar preparado?
"O mais importante disso é que a gente trabalha em dupla, então não caem os dois; se um cai, o outro segura. No Doutores da Alegria a gente também tem encontros para falar e conversar sobre esses casos – brincamos que é uma higienização emocional. Normalmente, chega um cara e diz: 'Nesta semana eu estava num quarto e a criança de que eu cuido há tanto tempo faleceu...', então é dentro dessa coisa de falar, de descarregar. A gente faz isso, senão você pira legal. É bem complicado.
E, ainda mais, muitos palhaços tiveram filhos agora, então a relação do palhaço com a criança doente já muda completamente. Estamos sempre apoiando o outro, não tem como ser diferente."
Relações duradouras
"A gente trabalha nos mesmos hospitais por mais ou menos um ano. Neste ano trabalho no Campo Limpo, no ano que vem provavelmente eu vá para outro hospital com outro palhaço, e outro integrante do Doutores da Alegria assume a vaga no hospital que deixei.
Nós temos um caso que, para mim, é muito forte, em que eu conheci um menino no Hospital do Mandaqui que havia sido atropelado com 2 anos de idade, e o pai, desesperado, pegara o menino e, por isso, ele só mexe do pescoço para cima, somente a cabeça. Ele ficou na UTI do hospital por 15 anos, então conheceu todos os palhaços nesse período.
Eu tenho uma foto com ele bebezinho de 2 anos, e hoje ele está com 17 anos agora e foi para casa, pois conseguiu material de que precisava. Ele, por causa do Doutores da Alegria, começou a pintar. Põe o pincel na boca e pinta. E pintou todos os palhaços do Doutores, fez quadros de todos. Fizemos um leilão e conseguimos uma grana para ele comprar um computador. Isso é lindo, é muito tempo junto.
A maioria dos palhaços tem todo esse tempo de casa, então são muitas crianças que a gente conhece há anos que vivem no hospital ou que já foram embora. Outro dia mesmo eu estava no hospital e uma moça disse: 'Eu conheço essa sua voz. Doutor Valdisney me atendeu quando eu era criança'. Isso é muito importante para nós."
O que é ser palhaço?
"É buscar o meu eu mais verdadeiro, porque, quando sou palhaço, não tenho medo de nada, não tenho receio. A partir do momento em que comecei a fazer palhaço, tudo que eu faço acho que o palhaço está por baixo daquilo. Mesmo fazendo 'teatro sério' ou qualquer espetáculo, acho que o palhaço é quem está fazendo essa coisa séria. Sou eu, o palhaço sou eu. Acho que quem for fazer palhaço tem que descobrir o seu eu interior e botar para fora."
Papo de coxia é um espaço virtual dedicado a conversas e expressões de aspectos, experiências e pensamentos sobre as diversas e distintas artes cênicas.