por William Nunes de Santana

 

A série Festas populares do Brasil, do Itaú Cultural (IC) destaca a diversidade, cultura e tradição das celebrações típicas do país. Nesta edição, William Nunes escreve sobre a Romaria de Finados, de Juazeiro do Norte, no Ceará.

Fotografia da estátua do padre Cícero em Juazeiro do Norte. A estátua branca é vista de baixo para cima, com o céu azul ao fundo.
Estátua do padre Cícero na colina do Horto, em Juazeiro do Norte (imagem: Lourenço Torres (Domínio público))

Tradicional manifestação popular do calendário brasileiro, a Romaria de Finados de Juazeiro do Norte leva anualmente uma multidão de fiéis de diversos lugares do país à cidade cearense no mês de novembro. Em 2022 – depois de dois anos sem a presença maciça dos romeiros, devido à pandemia –, a expectativa do município é receber em torno de 400 mil visitantes para uma programação que inclui turismo religioso, missas, atividades culturais e quermesses.

Um dos locais mais visitados é o túmulo do Padre Cícero Romão Batista – mas você sabe quem foi ele? Talvez você se lembre de Zeca Diabo, personagem interpretado por Lima Duarte na novela O bem-amado (1973), rezando por seu “santo padim pade Ciço”; ou mesmo da cena do filme O auto da compadecida (2000) em que João Griló, vivido por Matheus Nachtergaele, faz um cangaceiro atirar contra seu próprio capitão com a promessa de que, assim, ele conhecerá o “padim”. Pois bem, acontece que Padre Cícero é uma figura não só muito conhecida no imaginário popular, mas também importante para Juazeiro do Norte.

A professora e romeira Tereza Siqueira, atual presidente da Fundação Memorial Padre Cícero, conta que foi na cidade de Padre Cícero que ela escolheu ter seus três filhos. Natural de Itapipoca (CE) – “terra dos três climas: sertanejo, serrano e litorâneo”, ela diz –, Tereza chegou a Juazeiro do Norte como professora do estado. Anos depois, passou a atuar na fundação, que reúne grande parte das relíquias do padre. Até que, em 2021, recebeu o convite para presidi-la. “Vai ser uma glória participar do processo de beatificação do Padre Cícero”, diz, esperançosa.

Atuação sociopolítica

Cícero Romão Batista nasceu em Crato, no interior do Ceará, em 1844 e faleceu aos 90 anos, em 1934, em Juazeiro do Norte. Chegou ao vilarejo de Tabuleiro Grande poucos anos depois de sua ordenação, em 1870. O vilarejo, pertencente ao município de Crato, foi emancipado em 1911, quando passou a se chamar Juazeiro – apenas em 1943 se transformou em Juazeiro do Norte.

Devido à sua atuação social e política ao longo dos anos, aliada ao lado religioso, Padre Cícero tornou-se o primeiro prefeito da cidade recém-emancipada. Segundo Tereza, ele foi responsável por “reunir a comunidade para ensiná-la a rezar – instruindo os moradores da vila no amor à Nossa Senhora das Dores – e também a ter um ofício para sustentar suas famílias”. Para a época, a chegada de um padre a um pequeno vilarejo era um acontecimento substancial.

“Padre Cícero foi um dos precursores da emancipação da cidade, junto com um grupo de pessoas próximas a ele. Não foi fácil; na época havia políticos muito poderosos, que, de alguma forma, dificultavam seu trabalho social e político”, conta Tereza. Cícero também foi símbolo da Revolta de Juazeiro, em 1914, ao defender o território cearense e seu povo.

“Ele fazia política, mas política social, no sentido de organizar a cidade, de receber as pessoas que o procuravam. Assim, ele se tornou um líder.”

Retrato em preto e branco de Cícero Romão Batista.
Cícero Romão Batista, o "padim pade Ciço" (imagem: Autor desconhecido (Domínio público)

O santo popular

Anos antes, um milagre concebido pelo padre mudou sua vida. O caso se deu com a hóstia que virou sangue na boca da beata Maria de Araújo, em 1889. Uma manifestação divina contestada pela Igreja Católica, mas que foi responsável por atrair milhares de romeiros à cidade desde então. Não reconhecido pela Igreja, e dela excomungado, Cícero não ultrapassou os limites impostos e acatou a determinação da instituição, tendo suas ordens sacerdotais cassadas.

“O povo o acolheu, porque todo mundo considerava uma injustiça. E isso só fortalecia as romarias. As pessoas vinham da mesma forma, se multiplicavam e acorriam sempre ao padre; ele era procurado por todos que aqui vinham. Essa suspensão de ordem serviu para o povo considerar que ele era mesmo um santo – ele já era santo no coração do povo”, diz Tereza.

Para ela, a devoção surge para além do milagre. O aconselhamento dado pelo padre aos moradores da cidade foi fundamental para criar a figura de santo popular. “O padre era um clarividente, uma pessoa que se comunicava com todo o país. E essa devoção não é à toa, foi um trabalho feito com muito cuidado e respeito.”

“Você veja, a questão do milagre, o sofrimento ao qual o padre teve de se submeter por causa da própria Igreja Católica, que não considerava o milagre naquela época. Ele dizia que a Igreja que o condenava seria a mesma de sua ressurreição. E é ela mesma, a Igreja Católica, que vai provar o que foi o milagre em Juazeiro do Norte. Hoje, nós que moramos na cidade nos envaidecemos dessa profecia do padre”, complementa.

Perdoado somente em 2015, Cícero foi declarado “servo de Deus” em 2022, quando o Vaticano autorizou a abertura do processo de beatificação. A data para a conclusão desse processo, no entanto, não está definida. Tereza conta que a notícia fez todos chorar de alegria. “Com o Papa Bento XVI no Vaticano, esse processo foi revisto. O Papa viu as tamanhas injustiças que haviam sido cometidas com o padre e – não foi só com o padre – também com a beata Maria de Araújo, que foi instrumento de transformação da hóstia em sangue. Muita coisa que foi atribuída a ela era para atingir o Padre Cícero; a cultura da época era uma cultura machista. A beata foi uma mulher negra e pobre, então havia preconceito de todas as linguagens”, explica.

Retrato de Tereza Siqueira, presidente da Fundação Memorial Padre Cícero.
Tereza Siqueira, presidente da Fundação Memorial Padre Cícero (imagem: divulgação)

Reconhecimento e legado

Cícero morreu sem o perdão da Igreja, mas se tornou um ícone para os milhares de fiéis e reconhecido por seu trabalho em Juazeiro do Norte. “Uma cidade com pouco mais de 100 anos, que teve seu início com a figura maior do Padre Cícero”, afirma Tereza.

Sem a viabilidade de realizar as romarias nos dois anos de restrições mais contundentes da pandemia (2020 e 2021), Juazeiro do Norte passou por um período sem seus ilustres visitantes. Havia pouca gente nas ruas e nas igrejas, onde só eram permitidas duas pessoas no mesmo banco, com máscaras e higienização. “Era uma tristeza muito grande”, lamenta Tereza. O jeito, assim como com quase todo mundo, foi promover atividades virtuais. “Usamos as redes sociais da fundação para compartilhar mensagens com os romeiros. E eles perguntavam como podiam agradecer as graças recebidas por meio da Mãe das Dores e do Padre Cícero.”

A principal missão da Fundação Memorial Padre Cícero é a preservação da cultura local, a salvaguarda de bens e relíquias do Padre Cícero, com base nos quais se pode contar um pouco da história da cidade. Com autonomia e orçamento próprio, a equipe – hoje composta de 12 pessoas – realizou desde exposições e lançamentos de livros até projetos em parceria com outras instituições. A Exposaudade, por exemplo, reúne elementos que estiveram presentes no velório do padre. Entre os objetos há uma relíquia recém-adquirida: um oratório que pertenceu a ele datado de 1917. “A peça foi doada em 1921 a uma família que morava em Juazeiro do Norte, mas que se mudou para o Recife. A família das detentoras se comprometeu a fazer com que essa peça retornasse a Juazeiro do Norte”, conta Tereza.

“Temos um trabalho bem dinâmico, tudo para que a fundação não seja um órgão morto. O museu é vivo.”

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