Réveillon de Copacabana: a ritualização da passagem do tempo
10/12/2022 - 09:00
por Maria Clara Matos
A série Festas populares do Brasil, do Itaú Cultural (IC), destaca a diversidade, a cultura e a tradição das celebrações típicas do país.
“O Ano-Novo se enquadra no cenário das grandes festas do nosso calendário que dão ritmo e graça à nossa vida coletiva; preenchem-na de afetos, sentimentos, compartilhamento e sociabilidade. E isso é profundamente humano”, afirma a antropóloga e professora Maria Laura Cavalcanti, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O Réveillon de Copacabana é um desses marcos na passagem do tempo. Famoso por reunir milhares de pessoas – com número recorde de cerca de 3 milhões na edição de 2020, anterior à pandemia de covid-19 –, é hoje conhecido pelos grandes shows e pelos fogos de artifício. Mas qual sua origem?
Veja também:
>>Catopês, caboclinhos e marujadas: conheça as tradicionais festas de agosto do Norte de Minas
>>A festa dos gêmeos: o sincretismo nas festas de Ibeji e de Cosme e Damião
O costume de ocupar as praias cariocas na véspera do Ano-Novo é relativamente recente, data de meados de 1940, e está intimamente ligado ao culto dos orixás – mais especificamente, às homenagens a Iemanjá – de religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda. Iemanjá é uma divindade africana originalmente vinda da Nigéria, na África, da tradição iorubá, e que no Brasil ganhou novos contornos em razão do sincretismo religioso. Com a mescla de influências, a imagem da Rainha do Mar guarda semelhanças com a Virgem Maria, com o folclore europeu e brasileiro, além de características indígenas. Seu dia é comemorado em festas organizadas pelos terreiros em 2 de fevereiro na Bahia, por exemplo, e em 8 de dezembro em São Paulo, mas as homenagens se estendem pelos últimos dias do ano.
Flores, perfume, arroz, carne de ovelha e bijuterias são presentes dos devotos à Rainha do Mar no dia 31 de dezembro. Reginaldo Prandi, sociólogo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), pontua que esses elementos são importantes para as oferendas às divindades: “Nos cultos africanos a homenagem aos orixás é feita com o que é essencial para a vida: comida, bebida, abrigo (teto, roupas ou enfeites) e diversão”. A dança e a festa estão na essência da própria religião.
Prandi também observa que, antes dedicado à igreja católica, o espaço público começa a ser ocupado pelas religiões de matriz africana, previamente reservadas aos terreiros. Especialista em temas afro-brasileiros, o escritor Edison Carneiro (1912-1972), no artigo “A divindade brasileira das águas”, de 1968, conta que os devotos não iam isoladamente à praia, mas coletivamente, uniformizados com roupas brancas e em geral descalços, trazendo atabaques, flores, velas e presentes diversos. Reunia-se uma multidão de 30, 50 ou mesmo 100 mil pessoas.
O público foi se ampliando principalmente com o crescimento dos adeptos da umbanda. Nascida nos anos 1920 e 1930 e tipicamente carioca, a crença mescla o candomblé de origem baiana com outras formas de religiosidade locais, o catolicismo e o espiritismo kardecista. Segundo Prandi, durante muito tempo, os candomblés de divindades africanas permaneceram mais ou menos confinados a seus locais de origem, mas logo no início de sua constituição, com o fim da escravidão, muitos negros haviam migrado da Bahia para o Rio de Janeiro, levando consigo suas religiões, que se mesclaram com as tradições locais.
Dada a diversidade de suas entidades – indígenas, pretos velhos, ciganos, crianças e brancos, entre outros –, a umbanda constitui-se, nos anos 1940 e 1950, em símbolo de uma identidade nacional essencialmente brasileira, momento de valorização da mestiçagem no país, consolidando-se ainda mais. “A umbanda surge em um contexto em que se estava tentando pensar a identidade brasileira. É a época em que o samba foi cunhado como grande ritmo do Brasil, o momento em que a Carmen Miranda ganha expressão e quando a Disney cria o Zé Carioca”, conta a pesquisadora do Departamento de Antropologia da USP Flávia Belletati. Maria Laura concorda e acrescenta que a ocupação da praia vai na esteira dessa presença grande da umbanda na vida coletiva, que nos anos 1960 se nacionaliza e deseja se expor, o que acaba atraindo a atenção da população como um todo.
>>Veja também:
Vídeo do cineasta Vincent Moon, do projeto Híbridos, sobre o Réveillon de Copacabana:
Os famosos fogos
As homenagens a Iemanjá ganharam espaço nas areias cariocas, mas com o tempo e a ampliação dos shows e dos fogos de artifício o ritual praticado pelos umbandistas foi se tornando cada vez mais tímido, resumindo-se hoje a poucos pontos da praia. No final dos anos 1970, o extinto Hotel Le Méridien Copacabana iniciou uma queima de fogos em cascata do alto de seus quase 40 andares, o que serviu de inspiração para que outros hotéis promovessem seus espetáculos pirotécnicos. Com o aumento dos turistas, aos poucos a Prefeitura do Rio de Janeiro, já na década de 1990, se encarregou da organização da festa, instalando os palcos para shows nacionais e internacionais nas areias de Copacabana.
Após ser remodelado nos dois anos de pandemia, em 2022, o réveillon do Rio volta à ativa nos antigos moldes, com diversos palcos na areia, além do show pirotécnico. Com o tema “O Réveillon da nova era”, a festa da passagem para 2023 terá 11 palcos espalhados por toda a cidade (Copacabana, Flamengo, Guaratiba, Ilha do Governador, Madureira, Paquetá, Penha, Ramos e Sepetiba).
Segundo a Riotur, empresa de turismo da Prefeitura, a Praia de Copacabana deverá receber mais de 1 milhão de pessoas. Também está previsto que a ocupação dos hotéis atingirá 100%. Com duração mínima de 12 minutos, os famosos fogos de artifício ficarão a cargo de dez balsas espalhadas pela orla.
Referências
A dança dos caboclos: uma síntese do Brasil segundo os terreiros afro-brasileiros, de Reginaldo Prandi.
A divindade brasileira da águas, de Edison Carneiro. Publicado na Revista Brasileira de Folclore em maio/agosto de 1968.
Réveillon de Copacabana – série Festas populares do Brasil
Onde: Rio de Janeiro (RJ)
Quando: passagem de 31 de dezembro de 2022 a 1º de janeiro de 2023. A programação ainda não foi divulgada.