por William Nunes de Santana

 

Um grupo de quatro músicos pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) – Diego Maurilio, Éder Augusto Marcos, Guilherme Baldovino e Janaína Avanzo – apresenta o resultado do projeto A noiva do mar, com apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020, que traz ao público a ópera de mesmo nome da musicista brasileira Lycia de Biase Bidart (1910-1991). Por meio de um siteacesse aqui –, é possível conferir a transcrição, a revisão e a digitalização da versão reduzida para piano da obra, além de uma reprodução em formato Midi (código que representa parâmetros musicais).

Compositora, pianista e maestrina – uma das primeiras mulheres a atuar na função –, Lycia nasceu no Espírito Santo e viveu grande parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde atuou no Theatro Municipal durante o século XX, apresentando obras autorais e conduzindo orquestras. Compôs a ópera A noiva do mar em 1939, com libreto baseado no conto “A noiva do golfinho”, do romancista baiano Xavier Marques. A história, que possui uma temática fantástica, tem como protagonista Marina, uma órfã que, ainda criança, apareceu misteriosamente na Ilha de Tinharé, no litoral baiano, e foi adotada por um casal de idosos. Marina passa seus dias sozinha e pensativa junto ao mar, como a esperar por alguma embarcação.

Sem registros da performance da ópera, ou mesmo da existência de uma partitura pública, o projeto busca impulsionar a pesquisa, a publicação e a execução de mais obras criadas por mulheres compositoras – assim como Lycia. Disponibilizando esse registro documental, o grupo de músicos espera não apenas facilitar o acesso à obra da artista, mas também permitir que seja executada.

Na entrevista abaixo, Janaína Avanzo conta mais ao Itaú Cultural (IC) sobre a criação e a criadora de A noiva do mar.

Quem foi Lycia de Biase Bidart? Ela foi uma das primeiras mulheres a reger uma orquestra? Qual é a importância do fato, considerando o contexto da época?

Lycia foi uma musicista brasileira multifacetada. Além de compositora, também era pianista e maestrina. Ela teve uma vida musical muito movimentada, sendo um nome de destaque no Theatro Municipal do Rio de Janeiro pelas suas obras e pela regência durante o século XX. Então, sim, ela foi uma das primeiras mulheres no Brasil a estar à frente de uma orquestra, inclusive, muitas vezes conduzindo peças autorais, o que certamente era algo incomum para a época.

Nem sempre nos foi permitido estudar música em toda a sua complexidade. Até o final do século XIX, por exemplo, alguns conservatórios de música ainda proibiam a entrada de mulheres. No Brasil, é a partir do século XX que vão surgir mais compositoras, maestrinas, educadoras e outras mulheres, como Lycia, que buscavam uma carreira completa dentro da música, ou seja, que não se limitasse apenas ao canto ou ao piano como entretenimento familiar, mas que englobasse também a criação de obras e a liderança à frente de grupos musicais.

Com certeza, todo o trabalho de Lycia e de outras musicistas da época contribuiu para diversificar o meio musical, sempre tão masculino, e também para inspirar outras mulheres a ocuparem esses espaços.

Fotografia colorida de Lycia de Biase Bidart, musicista e maestrina. Na imagem, Lycia é uma mulher na casa dos 70 anos, possui cabelos brancos, usa óculos e está sorrindo.
Lycia de Biase Bidart (imagem: divulgação)

Por que resgatar a ópera A noiva do mar?

Como uma das primeiras óperas brasileiras compostas por uma mulher, A noiva do mar já é um marco histórico por si só. E óperas são obras muito complexas, com orquestra, solistas, coro, texto, cena. São vários elementos que tornam essa obra muito importante de ser estudada, executada e conhecida pelo público. Para que isso aconteça, a digitalização é uma etapa essencial, já que até agora só tínhamos o manuscrito disponível.

Manuscritos são muito bonitos e contêm todas as informações de que precisamos, mas, ainda assim, são feitos por mãos humanas, o que torna a escrita pouco padronizada, às vezes com rasuras e erros. Por isso, passar essas ideias musicais para um programa que formata tudo de uma maneira mais estruturada permite que a leitura da partitura seja muito mais fácil. Além disso, por meio da editoração, podemos fazer eventuais correções (embasadas na teoria da música) e atualizar a partitura para uma escrita musical mais atual.

Tudo isso aumenta a acessibilidade de A noiva do mar e, consequentemente, amplia as possibilidades de termos estudos e apresentações da obra.

A versão apresentada no projeto é reduzida para piano e voz. A versão original foi composta para quantos grupos de instrumentos?

A ópera original prevê uma grande orquestra, com naipes de cordas, madeiras e metais, e instrumentos como harpa e celesta, além de um grande coro e de quatro cantores solistas. Mas é comum que compositoras e compositores escrevam a obra original com todos esses elementos e depois façam uma redução da parte orquestral para o piano, ou seja, as ideias musicais da orquestra são reescritas de forma a permitir que o piano as reproduza. Assim, é criada uma partitura com todas as partes vocais e a redução para piano, que será utilizada nos ensaios vocais e de cena. Isso facilita a preparação de óperas, já que não é necessário mobilizar toda uma orquestra, às vezes com 50 ou cem pessoas, para os ensaios.

É possível apresentar as óperas apenas dessa forma, o que facilita a sua realização por grupos menores ou estudantes, por exemplo. A redução também tem um alto valor para estudos e pesquisas, já que grande parte das ideias musicais da compositora ainda está presente ali, ao mesmo tempo que entender o que ela escolheu manter ou retirar da orquestra também é uma forma de compreender melhor a obra.

A peça já foi tocada ou permanece inédita?

Até onde sabemos, permanece inédita. Lycia escreveu esta ópera em 1939, mas não chegou a realizá-la. Em 1989, ela doou seu acervo de mais de 400 obras manuscritas para a biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA/USP) e, desde então, parece que esse acervo não foi muito acessado. Mas acreditamos que transformar esse manuscrito em uma partitura bem estruturada e padronizada com certeza vai facilitar que a estreia de A noiva do mar aconteça muito em breve.

O que se pode destacar dessa obra?

Antes de tudo, certamente é uma obra grandiosa. A orquestra conta com muitos instrumentos e com uma escrita bem complexa, os coros têm várias divisões de vozes e as cenas também foram pensadas com muito cuidado por Lycia, que sempre indica as movimentações e ambientações da ópera ao longo da partitura. Ao mesmo tempo, não chega a ser uma ópera longa, mas consegue, em sua pequena duração, contar uma história muito complexa e envolvente.

O libreto é baseado no conto “A noiva do golfinho”, do escritor baiano Xavier Marques, e traz elementos da cultura brasileira misturados a uma trama fantasiosa. A personagem principal, Marina, é uma órfã acolhida pela população da Ilha de Tinharé, mas seu jeito de ser e suas ações sempre deixam os habitantes desconcertados e confusos, e mesmo suas melhores intenções não são capazes de evitar uma tragédia.

O importante é que Lycia escreveu uma música que dialoga com a narrativa e com as ambientações de cada cena, permitindo ao público uma maior imersão na história que está sendo contada. Com certeza é uma obra com grande potencial artístico e acadêmico.

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