Qual é a história da sua maior saudade?
Eu acho que a história da minha maior saudade é a minha avó. Comecei a sentir o encantamento da literatura com ela. Não vim de uma família de leitores e leitoras; meu avô não sabia ler. Eu achava aquilo muito doido, e lembro de ficar pensando em como era não saber ler, me perguntava aos 6 anos, depois compreendi. E compreendi o esforço dele ao juntar as letras da marca do liquidificador para me provar que podia. Lá em casa não havia muitos livros. Havia uma enciclopédia médica, embora ninguém da minha família fosse da área da saúde. E lembro de ficar inventando umas histórias sobre pulmões sadios e não sadios com o meu irmão e, dessa forma, assustarmos as crianças vizinhas. Mas estou criando digressões. A maior saudade mesmo é da vó.
Com 6 anos ou 7, não lembro bem, morei com meus avós. Meus pais decidiram mudar de cidade e, para ajeitar tudo com meu irmão pequeno, me deixaram com a vó e o vô por quase um ano. Eu ficava triste, principalmente à noite, porque sentia saudade dos meus pais. Aí a vó um dia perguntou se eu queria ouvir um causo. Um causo? O que é isso? É uma história. "Que nem a da Chapeuzinho Vermelho?" "Mais ou menos", ela disse, "é que os causos são de verdade, e esse que vou contar aconteceu comigo."
Então, todas as noites, ela me contava histórias sobre vacas furiosas que a perseguiam, casas com chão de terra sobre o qual se podia acender fogo. Fogo no chão da casa? Isso mesmo. Contava histórias de fugas e de cachorros que tinham salvado a minha mãe quando ela tinha 3 anos de idade e de uma vez que minha mãe e minha tia quase se afogaram numa sanga. "Numa sanga? O que é isso?" "É um rio que se forma com a chuva." Eu achei que era um rio de sangue. E a vó ria das minhas ideias. Assim, a minha imaginação se povoava com palavras e imagens nas quais eu nunca tinha pensado. Perdi minha avó em 2010, por problemas relacionados à diabetes. A vó adorava um doce. Ela própria não era muito doce, não, mas sabia ser engraçada, sabia rir, sabia contar seus causos. A história da minha maior saudade se chama Dona Neuraci.
O que você mais quer agora?
Se eu disser a paz mundial, vai soar estranho? Eu quero que as pessoas se eduquem sobre racismo e colonialidade. Quero que leiam cada vez mais autores e autoras negras e indígenas. Quero que as lutas sejam intimamente compreendidas e que sejam um compromisso diário. Quero que as pessoas aprendam a dar valor às palavras e aos seus significados. Quero que entendam que as palavras são dados construídos historicamente e que a área das humanidades é tão importante quanto a das ciências da vida. Quero que entendam que cifras e tubos de ensaio só fazem mesmo a diferença quando puderem ser acessados por todos. As invenções e as tecnologias, sejam elas avançadíssimas pesquisas ou saberes milenares, só fazem sentido quando tanto a sua produção quanto o seu acesso são de e para todos.
Como você imagina o amanhã?
O exercício de imaginar o amanhã numa hora dessas pode ser muito doloroso. Mas eu sei que é preciso. Estamos num presente de negligências genocidas, de violências reais e simbólicas muito evidenciadas e legitimadas por vozes políticas. Não há novidade da institucionalização da necropolítica, mas o levante tem tomado força.
Conversava com uma amiga querida, agorinha antes de responder à entrevista, e estava contando a ela que ando triste. Ela me disse que havia cozinhado uma panela de feijão, arroz e carne e tinha saído a distribuir quentinhas e aquilo tinha dado força para seguir com todos os trabalhos que ela precisa fazer para que ela própria tenha essa comida, tenha dignidade, tenha condições mesmo de financiar seu trabalho intelectual.
Tenho me engajado em ações no agora para que o amanhã coletivo seja possível e seja menos cruel. A paralisia é inimiga do futuro. A gente tem que dar um jeito de sair na outra ponta do tempo para poder garantir que não morramos nesse passado. De modo que, para mim, imaginar o amanhã começa nas nossas ações no presente, tudo o que escolhemos agora é a imagem do amanhã. Desejo do fundo do meu coração que possamos fazer escolhas melhores para que nesse exercício de imaginar o futuro exista algo de esperançoso.
Quem é Natalia Borges Polesso?
Uma pessoa inquieta. Fisicamente inquieta, inclusive. Uma pessoa que não consegue deixar as pernas paradas, uma pessoa que atualmente dorme bem, o que não foi sempre assim. Natalia é doutora em teoria da literatura, pesquisadora em pós-doutoramento e coordenadora do GEC, um grupo de estudos críticos que leva com uma colega querida e cujos encontros a deixam contente. Natalia desconfia de si mesma a todo momento, e isso pode ser bom e ruim. Ela é a humana de dois felinos, chamados Chico e Pandora, que consomem bastante de seus olhares. Natalia é casada com a Daniela, e juntas elas trocam aulas de francês e inglês, administram uma casa e seus afazeres e cultivam plantas e planos de vida.
Natalia é uma pessoa meio melancólica e bastante engraçada. Ela gosta de cozinhar e cozinha muito bem, porém não sabe fazer bolos nem pães – nisso é um desastre. Natalia é uma leitora curiosa, mas desatenta, de modo que vai acumulando livros pela metade até que terminem. Mas nunca é o caso. Natalia é muito programática, mas não muito praticamente organizada. Ela gosta e precisa de café pela manhã, mas à noite bebe infusão de ervas. Tem as mãos e os pés frios no inverno, tem as unhas quebradiças e espreme os olhos quando lê mesmo estando de óculos. Natalia é uma escritora obstinada, que se dedica a esse ofício com muito carinho e violência, alternadamente, mas nem sempre.
Publicou Recortes para Álbum de Fotografia sem Gente (2013), Coração à Corda (2015), Pé Atrás (2018), Amora (2015), livro vencedor do Prêmio Jabuti 2016, Controle (2019) e Corpos Secos (2020). Natalia nunca escreve sobre si mesma na terceira pessoa, ela acha essa prática estranhíssima.
Um Certo Alguém
Em Um Certo Alguém, coluna mantida pela redação do Itaú Cultural (IC), artistas e agentes de diferentes áreas de expressão são convidados a compartilhar pensamentos e desejos sobre tempos passados, presentes e futuros.
Os textos dos entrevistados são autorais e não refletem as opiniões institucionais.