Há 150 anos, Machado de Assis estreou como romancista
17/04/2022 - 08:00
por Heloísa Iaconis
Em abril de 1872, há 150 anos, chegou aos leitores Ressurreição, o primeiro romance de Machado de Assis. A história do Doutor Félix e de Lívia representa, a valer, mais do que a estreia de um autor: eis o encontro um do Bruxo do Cosme Velho com o gênero que o coloca no panteão literário. O romance tanto marca a trajetória machadiana quanto o escritor se torna mestre do texto romanesco. Hélio Guimarães, docente da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da produção de Machado, fala sobre o título em questão e o projeto da coleção com todos os livros do ficcionista aqui homenageado, a qual será lançada em 2023 pela editora Todavia, com apoio do Itaú Cultural. Confira a entrevista.
De que forma é compreendido Ressurreição? Pode-se entendê-lo como um romance “romântico”?
Ressurreição foi o primeiro romance publicado por Machado de Assis, há exatos 150 anos (abril de 1872). Na divisão que se costuma fazer da obra do autor em duas fases, uma romântica e outra realista, Ressurreição pertenceria à primeira fase. Entretanto, essas divisões e classificações nunca funcionam bem quando estamos diante de um grande escritor. Trata-se de um romance que gira em torno do amor e de sua sacramentação pelo casamento, mas a expectativa de que amor e casamento estejam conjugados, que faz parte de um certo tipo de romance romântico, é frontalmente frustrada em Ressurreição, romance em que, diga-se de passagem, não há nenhuma ressurreição. Ou seja, é um romance que lida com situações e personagens românticas, fazendo isso, porém, expondo o que há de artificial e infundado nelas.
A obra, sendo a estreia de Machado de Assis no romance, faz parte da primeira fase do artista. O que caracteriza essa fase?
A chamada primeira fase compreende quatro romances: Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. Na década de 1930, Lúcia Miguel Pereira publicou um livro importante, Machado de Assis (Estudo crítico e biográfico), no qual identificou naqueles primeiros títulos o que denominou “ciclo da ambição”. Isso porque as intrigas envolvem protagonistas pobres, talentosas e ambiciosas, em luta para ascender socialmente e para viver dignamente em ambientes sociais muito diferentes daqueles em que nasceram. Ocorre que Ressurreição é um romance bastante diferente dos outros três, pois apresenta um homem, um médico bem amparado do ponto de vista material, que não consegue viver o amor plenamente por ser atormentado pelas dúvidas e pelo ciúme. O que os quatro primeiros romances têm em comum, isso sim, é a construção de um horizonte em que a conjunção entre amor e casamento seria um caminho para a felicidade, mas eles mesmos tratam tratam de mostrar o infundado dessas expectativas. O que muda a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas é que já não há mais qualquer ilusão à vista.
Na “Advertência da primeira edição”, datada de 17 de abril de 1872, Machado de Assis pede à crítica “intenção benévola, mas expressão franca e justa”. A crítica acatou esse pedido?
O livro recebeu muita atenção da crítica logo quando saiu, muito mais do que qualquer outro romance publicado por Machado até Quincas Borba, quase 20 anos depois, em 1891. Quando estreou como romancista, Machado tinha 32 anos, sete livros publicados e já era conhecido e respeitado como poeta, crítico e autor de textos de teatro. Havia, então, certa expectativa e curiosidade com sua estreia no romance. As reações foram bem misturadas. A crítica elogiou bastante, mas também pôs muitos reparos. De maneira geral, louvaram o domínio e a elegância da escrita, “a pureza do estilo”. No entanto, estranharam a frieza do romancista, que não apresentava uma história cheia de peripécias, lances sentimentais, cor local e moralidade clara. Pelas reações, fica nítido que Machado de Assis estava produzindo um romance que destoava do que se fazia no Brasil e do que os leitores esperavam de um romance brasileiro naquela altura da década de 1870.
O que há, em Ressurreição, que é considerado uma marca machadiana?
O romance tem como mote uns versos de Shakespeare, que dizem o seguinte: “São as nossas dúvidas uns traidores, que nos fazem perder muita vez o bem que poderíamos obter, incutindo-nos o receio de o tentar”. Na “Advertência” da obra, Machado salienta que seu intuito é pôr essa ideia em ação. Vejo aí o interesse pela figuração literária de dúvidas, incertezas e indeterminações, que de fato dão muita força aos escritos de Machado de Assis e ganharão configurações impressionantes em Dom Casmurro e Esaú e Jacó, por exemplo. No caso de Ressurreição, essas instabilidades todas estão relacionadas à traição e ao ciúme, que são outra força-motriz de boa parte da obra machadiana.
Na contramão da pergunta anterior: existem, no livro em destaque, elementos que são, por assim dizer, “abandonados” por Machado de Assis em romances posteriores?
Há em Ressurreição um curioso e deliberado apagamento das diferenças sociais das personagens principais, que estão todas mais ou menos no mesmo estrato. Félix, o protagonista masculino, já de início ganha uma herança, o que afasta a ideia de que sua atração pela viúva Lívia passe pelo interesse material. Nos romances seguintes, as assimetrias são muito mais marcadas e decisivas, como a melhor crítica de Machado demonstrou, a exemplo dos trabalhos de Lúcia Miguel Pereira e Roberto Schwarz.
Além de romances, o ficcionista criou contos, peças de teatro e poemas. O que essa diversidade de gêneros literários revela?
Em primeiro lugar, revela uma dedicação incrível à literatura, muito singular entre seus contemporâneos, que se especializaram na poesia, ou no teatro, ou no romance. Machado escreveu e publicou bastante e por longo tempo, em todos os gêneros que se praticavam então, produzindo textos importantes no teatro, poesia, crítica, crônica, conto e romance. Essa diversidade dá também uma dimensão do talento, da ambição e do interesse de Machado em dominar tecnicamente cada tipo de texto. Os seus escritos sugerem que ele compreendeu as dificuldades técnicas de cada gênero e procurou se aperfeiçoar em cada um deles. Foi tão bem-sucedido que redefiniu o sentido e o peso do romance, do conto e da crônica no Brasil, isso para não falar da crítica, da poesia e do teatro.
Você é um dos responsáveis por um projeto de coleção machadiana, iniciativa a ser publicada pela editora Todavia e que conta com o apoio do Itaú Cultural (IC). No que consiste esse projeto? E como surgiu essa ideia?
O projeto consiste em publicar todos os livros que Machado de Assis lançou entre 1861 e 1908, em ordem cronológica, tomando como base as melhores edições, que foram supervisionadas por ele, e respeitando os seus usos particulares. Por exemplo: o modo como ele ordena as palavras e pontua seus textos. A ideia da coleção decorre de um interesse, de longo tempo, em conhecer a obra machadiana para além dos textos consagrados. Costumo dizer aos meus alunos que Machado de Assis não nasceu pronto: ele se constituiu como esse autor imenso que conhecemos a partir de muito talento, claro, mas também de muito trabalho e dedicação. A ideia ganhou concretude em 2018, quando organizei, com a colaboração de alunos da USP, uma exposição com todas as primeiras edições dos títulos de Machado pertencentes à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. No processo e na montagem da mostra, em que os livros foram dispostos em ordem cronológica de publicação, eu mesmo, depois de tantos anos de convivência com os escritos de e sobre Machado de Assis, me surpreendi com a variedade do que ele produziu e com a amplitude da sua carreira literária. Em geral, consideramos só o que veio a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, que saiu em livro em 1881. Mas 20 anos antes disso, em 1861, ele publicou Desencantos, e depois foram mais 12 livros de sua autoria até chegar a Brás Cubas.
Qual a sua expectativa em relação à coleção (que está em processo de feitura)?
A expectativa é que a coleção amplie a visão que temos de Machado de Assis a partir de textos confiáveis, propiciando um melhor conhecimento do processo de formação de uma das figuras mais extraordinárias de toda a história do Brasil.
O que você, enquanto leitor, mais gosta na obra do Bruxo do Cosme Velho?
Gosto do desafio que ela me coloca. Sempre que leio algum texto de ou sobre Machado de Assis, e há décadas faço isso praticamente todos os dias, descubro nele alguma coisa nova, alguma coisa que não tinha visto ou percebido antes. Isso, para mim, é fascinante e me faz querer ler e conhecer mais e mais.
Machado de Assis continua atual? Por quê?
Pelo visto, continua atualíssimo, pois novas edições e traduções de suas obras continuam sendo publicadas, assim como não param de sair novos estudos sobre ele. Volta e meia Machado de Assis vira tópico de discussão nas novas plataformas digitais. Penso que isso acontece porque as questões das quais Machado tratou, tanto as que dizem respeito à experiência brasileira como à condição humana, são facilmente reconhecíveis por qualquer leitor que se aproxime dos seus escritos com alguma disposição e interesse. As nossas grandezas e as nossas misérias – individuais, sociais e existenciais – estão todas lá.