por Cristiane Batista

Ao som de clássicos como “Vassourinhas” e “Elefante de Olinda”, frevos orquestrados e de canção, um grupo animado aquece o corpo e reconhece o ambiente para iniciar os primeiros passos. “Vamos fingir que estamos em Olinda! Jogue o corpo, misture-se com as pessoas, pode se desequilibrar. Estamos em um lugar seguro!”, brada Danielle França, audiodescritora, especialista em acessibilidade cultural e idealizadora do Frevo às cegas, projeto composto de oficinas e de um glossário com audiodescrição para o ensino do frevo a pessoas com deficiência visual. A iniciativa ganhou o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020.

Danielle trabalha com acessibilidade desde 2012, mesmo ano em que o frevo passou a ser considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em 2018, ela começou a gestar o projeto: “Sou superfoliã, tenho a palavra ‘Carnaval’ tatuada no braço esquerdo, mas não sabia dançar frevo. Percebi que algumas pessoas cegas não têm quase nenhuma experiência com o corpo e com a dança pelo medo de bater nos outros, uma coisa de achar que aquele não é o lugar delas. Então, pensei que isso precisava ser quebrado. Eu me matriculei na Escola Municipal de Frevo e passei a fazer vários cursos e oficinas para estudar a dança, entendê-la no meu corpo e então fazer a audiodescrição – que é um recurso inclusivo de acessibilidade comunicacional que traduz imagens em palavras, ampliando as possibilidades de acesso das pessoas com deficiência visual ao mundo das imagens”, explica.

Fotografia mostra um grupo de pessoas participantes do projeto Frevo às cegas reunidos em uma sala. Todos estão de máscara.
Participantes das oficinas do "Frevo às cegas" (imagem: Ana Olívia Gogoy)

Um dos desafios: como fazer a audiodescrição dos passos rápidos e acrobáticos do ritmo sem parecer aqueles aceleradores de áudio do WhatsApp? Em parceria com Jefferson Figueiredo, professor de frevo e passista, e com Milton Carvalho e Andreza Nóbrega, consultor e orientadora de audiodescrição, respectivamente, Danielle está desenvolvendo um glossário com 30 dos mais de 150 passos de frevo existentes, a partir de 12 horas de oficinas gratuitas com participantes entre 18 e 70 anos no Paço do Frevo – Centro de Referência em Salvaguarda do Frevo, localizado no Recife (PE).

O ponto de partida da equipe foi a contextualização da cultura do frevo, da origem do ritmo criado no final do século XIX no Carnaval pernambucano cuja dança frenética mistura marcha, maxixe e elementos da capoeira. Entender o porquê de cada passo, os costumes dentro da dança, a história das orquestras e dos dançarinos e como surgiram os passos, para então esboçar o que seria o glossário e experimentá-lo em conjunto com os participantes das oficinas, considerando suas características e subjetividades.

“Queremos ultrapassar o medo, desconstruir, soltar os corpos. O trabalho não é dirigido somente a pessoas com deficiência visual, mas a interessados em geral, a alunos de dança e também a professores, porque queremos colaborar com uma metodologia, atentando para a sensibilização e as necessidades desse público”, conta Danielle. Junto a seus parceiros, ela usa como ferramentas, além da audiodescrição, o toque corporal e bonecos feitos de arame moldável para uma melhor compreensão dos movimentos-base, que podem ser aéreos, baixos e térreos, e que depois podem ser multiplicados pelos dançarinos em muitos outros passos.

Fotografia colorida mostra Angelle Freitas. Angelle é uma mulher com deficiência visual e física. Ela está com uma roupa de dança, com o símbolo do Batman, e segura um objeto na mão.
Angelle Freitas, que se autodefine como “pessoa cega, amputada, transplantada, biomédica, palestrante, colunista e ativista”, aprovou a iniciativa (imagem: Ana Olívia Godoy)

Ensaio e espetáculo

Sombrinha colorida na mão, certa dose de condicionamento físico, um toque de fervor e, aos poucos, passos como a tesoura, a locomotiva, o carpado e o saci vão sendo executados a partir de comandos: “Um pé chapado no chão e o outro enganchado por trás do joelho, formando um número quatro com as pernas. Equilibre-se em um pé e dê pequenos saltos”.

Angelle Freitas, que se autodefine como “pessoa cega, amputada, transplantada, biomédica, palestrante, colunista e ativista”, aprovou a iniciativa. “O que nos limita não é a nossa deficiência, é a falta de acessibilidade. Quando vi que existia esse projeto inovador, feito para a gente, fiquei superempolgada! Eles fizeram da melhor forma para que eu me sentisse totalmente incluída no processo, sem barreiras atitudinais e físicas. A gente interagiu e se socializou. E o frevo? Ah! É um ritmo que eu amo! Traz alegria, energia, positividade, só sentimentos bons. Se tiver novamente, eu vou, viu?”, diz.

Máurio José do Carmo, fã de frevo desde a década de 1960 e dos intérpretes Expedito Baracho e Claudionor Germano, conheceu o Frevo às cegas por meio de uma amiga: "Gostei muito, porque representa a cultura pernambucana e foi uma aprendizagem a mais que tive. Achei o curso difícil, porque tem muitos passos e também porque, confesso, prefiro forró. Dá para dançar junto, para se agarrar com uma coroa bonita e cheirosa", ri. Ele, que além de dançarino é historiador e telefonista, também se autointitula “o poeta da luz azul”. "Quando eu era pequeno, enxergava um pouco, bem de perto, e azul é a cor de que mais gosto. Eu me apresento com ela quando a ocasião exige. É a cor do céu", explica.

Fotografia mostra um grupo de pessoas reunidas em uma sala. Elas estão de máscaras por conta da pandemia de covid-19.
O projeto "Frevo às cegas" promoveu oficinas de frevo para pessoas com deficiência visual (imagem: Diana Cavalcanti)

Próximos passos

Máurio já pode preparar a camisa preferida para a festa de lançamento do glossário, marcada para o segundo semestre de 2023, no Paço do Frevo. Nessa ocasião, ele, Angelle e os demais convidados poderão conferir o resultado do trabalho, que será disponibilizado em versão impressa em braille e também em áudio, no site pacodofrevo.org.br.

Para o fervo ficar mais quente, estão programadas ainda a apresentação de uma orquestra ao vivo e a exibição de um vídeo com todo o processo de realização do projeto, do início ao fechamento das oficinas, quando de surpresa todos chegaram fantasiados e maquiados em clima de baile de Carnaval. Parece que ele está chegando, não? 

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