por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

No início dos anos 2000, quando o acesso a músicas na internet era uma atividade trabalhosa e até arriscada, muitos portais disponibilizavam discos raros, não editados em CD. Foi assim que, em Salvador, na Bahia, Livia Nery conheceu a canção “Vinte Léguas”, da cantora brasileira Evinha, de 1974. Nunca antes regravada, a composição reapareceu no álbum Estranha Melodia (2019), 45 anos depois, na voz de Livia. “‘Vinte Léguas’ tem essa levada do violão brasileiro, com distorções de guitarra e muito groove. É um encontro da música brasileira com influências do rock e do funk, que aconteceu ali no final da década de 1960 e início dos anos 1970. Essa canção me arrebatou”, conta a cantora.

Lançado em 2019, Estranha Melodia, primeiro álbum de Livia, reúne composições nascidas ainda na Bahia há mais de dez anos. Produzido em parceria com o cantor e instrumentista Curumin, o disco registra uma trajetória já marcada por shows, apresentações em diferentes formatos e jeitos e um EP: Vulcanidades, de 2017. “Vulcanidades foi um retrato de minha vivência de show. Ali estava o resultado das performances que eu fazia com um tabuleiro de instrumentos eletrônicos, um lance bastante experimental. De lá para cá, amadureci muito as músicas e fui agregando novas pessoas, diálogos”, explica.

Livia Nery apresentaria as 13 canções que integram Estranha Melodia na Sala Itaú Cultural, mas, assim como as demais atividades do IC, o show foi suspenso. Nesta entrevista, a cantora fala sobre o início de sua carreira, compartilha um pouco de seu processo criativo e indica discos e livros para momentos turbulentos, como o atual. Este texto integra uma série de conversas com artistas que se apresentariam no IC nas últimas semanas, e inclui Ceumar, Ozorio Trio, Terra Celta, Rafa Castro, Teago Oliveira, Dingo Bells, Luiza Brina e Flaira Ferro. São conteúdos pensados para serem desfrutados de longe, em casa.

"Costumo compor e já ir 'vestindo' a música, acrescentando o maior número de instrumentos que consigo imaginar." (imagem: Caroline Bittencourt)

Como nasceu o seu primeiro álbum, Estranha Melodia, lançado no último ano?
O álbum veio de canções que eu tinha, compostas na Bahia desde 2009. Um apanhado de músicas que fiz em diferentes momentos e que já tocava muito em shows, de vários formatos e jeitos. Minha trajetória começou com apresentações ao vivo e faltava um registro em disco. Decidi pegar essas músicas todas e levar para São Paulo, e convidei Curumin para produzir [o álbum]. A gente tinha se conhecido em Salvador, em um workshop de MPC, e depois estreitou o vínculo por meio de Russo Passapusso e Tati Lírio. O uso de eletrônicos no instrumental dentro da canção sempre me instigou e Curumin faz isso de uma forma extremamente sensível e habilidosa. Começamos a pré-produção do disco na casa dele, depois juntamos mais dois músicos baianos (Aline Falcão e João Deogracias) e, enfim, fomos para o estúdio da Red Bull em São Paulo. Tudo foi muito dinâmico e o disco acabou sendo gerado nesse frame paulistano, a partir de uma bagagem baiana.

Você regravou “Vinte Léguas”, composição da cantora carioca Evinha que data da década de 1970. Ela nunca havia sido regravada por nenhum outro artista. Qual é a sua relação com essa canção?
Por volta dos anos 2000 estavam no ar muitos blogs de música que disponibilizavam discos raros, não editados em CD e aos quais, em Salvador, dificilmente eu teria acesso. Comecei a baixar muitos deles e conhecer uma discografia brasileira incrível e preciosa. Evinha foi uma delas. Conhecia só as músicas mais populares do Trio Esperança, e descobrir a carreira solo dela foi de cair o queixo. Ela era da [gravadora] Odeon na época, por onde também passavam Marcos Valle, João Donato, arranjadores como Dori Caymmi e Maestro Gaya. Que momento da música brasileira! Uma efervescência de talentos e criações. “Vinte Léguas” tem essa levada do violão brasileiro, com distorções de guitarra e muito groove. É um encontro da música brasileira com influências do rock e do funk, que aconteceu ali no final da década de 1960 e início dos 1970. Essa canção me arrebatou.

Como é a sua rotina de trabalho? Como as músicas costumam surgir para você?Agora, com o coronavírus, as rotinas estão em xeque. Mas, normalmente, eu tenho momentos de ouvir mais música e deixar surgirem ideias a partir das inspirações. Sempre anoto trechos de letra ou mesmo frases soltas que acho interessantes. Agora estou mais numa de produzir usando o computador, fazer batidas e instrumentais. Em Estranha Melodia, muitas músicas surgiram no piano, testando acordes em cima de melodias. A tecnologia me ajuda. Gosto da ferramenta do loop pedal, com que posso ir deitando camadas de forma imediata e criar uma cama vocal, por exemplo. Fica fácil improvisar e gerar melodias e ritmos. Costumo compor e já ir "vestindo" a música, acrescentando o maior número de instrumentos que consigo imaginar.

Quais caminhos foram percorridos de Vulcanidades, EP de 2017, até seu álbum mais recente?
Vulcanidades foi um retrato de minha vivência de show. Ali estava o resultado das performances que eu fazia com um tabuleiro de instrumentos eletrônicos, um lance bastante experimental. De lá para cá, amadureci muito as músicas e fui agregando novas pessoas, diálogos. Troquei ideia de som e rumos com Russo, Tati Lírio, Rafa Dias e Israel Lima em Salvador. Colaborei com o Ministereo Público Sistema de Som, na Bahia também. João Deogracias, meu amigo e baixista, e Aline Falcão participaram desses amadurecimentos. Depois veio Curumin, uma interação riquíssima, aprendi muito. Levei para esse disco os trajetos que fiz na Bahia, dentro e fora da música, essa viagem para São Paulo com as canções na mala para fazer o disco... Enfim, é um álbum de caminhos mesmo.

A música sempre esteve em sua vida?
Como muitos músicos e artistas da música, desde pequena mostrava alguma aptidão para a coisa, tocando um pianinho que me deram de presente e cantando. Lá em casa, ouvia-se muita música e minha mãe fazia coral. Eu assistia aos ensaios. Mas só em 2008 comecei a compor, depois de ter feito faculdade de comunicação e trabalhado na área. Fui entrando no ofício da música pelas beiradas: trabalhei em rádio, fiz pesquisa e programas de música, fiz curso de áudio e aprendi um pouco da tecnologia de produção musical eletrônica. Até que, num dado momento, tinha que escolher dar esse passo mais comprometido com a profissionalização. Foi o que fiz em 2013, quando saí da rádio. Em 2014, botei um show na rua, esse do tabuleiro eletrônico.

A última faixa de Estranha Melodia, “Spiritual”, é ainda mais singular. O que você poderia compartilhar sobre ela?
Essa música nasceu em improvisos vocais com o loop pedal. Digamos que eu estava meio sem rumo, um pouco triste. Então, foi como um tipo de oração para uma força maior me guiar. Foi em inglês porque eu senti que os vocais resultantes do improviso ficaram próximos aos spirituals estadunidenses. Tem um trecho que diz "I ask you wonder child / I ask you come close to me", que é um chamado para que uma criança venha para perto da minha vida. Um filho ou aquela energia genuína e alegre da criança. A criança que todo mundo tem dentro de si. Em outro momento, eu falo "my woman stay wild". Esse verso fala do poder que acessamos quando viramos bicho solto, vivemos um feminino mais visceral... Quando saímos da domesticação a que somos levadas a viver. A mulher tem um poder grande, potencial gerador, e é capaz de fazer tudo a que se propõe. Precisamos ligar o “foda-se” muitas vezes.

Como tem sido a sua rotina no isolamento que estamos vivendo? Como seu processo criativo tem reagido a ele?
Além do isolamento, estamos lidando com um luto coletivo, um pesar pelas vidas perdidas. E uma revolta pelo rumo do Brasil com o governo atual. Não é um momento, para mim, de querer se distrair ou buscar um divertimento alienado de tudo o que está acontecendo. O momento pede uma jornada interna e um atravessamento complexo. Primeiramente foi o baque de pensar o que vai ser da performance. A cada dia, vou tentando entender a profundidade da transformação que estamos atravessando. Estou estudando, escutando discos, vendo filmes, lendo, fazendo curso on-line. Aos poucos, eu me animo para fazer uma apresentação ao vivo, sentindo falta das pessoas, de tocar... Ao vivo porque estamos vivos, não é? Estou criando mais devagar, desacelerando mesmo. Aprofundando as pesquisas, algo que não estava conseguindo fazer no dia a dia antes do isolamento.

E o que tem visto, lido e escutado nos últimos tempos? Você poderia nos indicar um álbum, um filme ou série e um livro para este momento?
Vi o documentário Chico Science, um Caranguejo Elétrico e o documentário Beastie Boys Story, do grupo Beastie Boys (que foi uma influência para a própria Nação Zumbi). Ouvi umas coisas antigas de Erasmo Carlos que são lindas, como o disco Sonhos e Memórias, e Ana Mazzotti, uma pérola da música brasileira pouco reconhecida. Do disco mais novo de Childish Gambino eu gostei, assim como o álbum ao vivo de Gilberto Gil e BaianaSystem, que me emocionou ao vivo e no registro em disco. A quarentena é uma chance ótima para ler Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, inteirinho. É o primeiro relato que li contando a escravidão do ponto de vista de uma africana. Muito importante para todos nós que aprendemos a história sempre da perspectiva do colonizador branco.

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