por Duanne Ribeiro

Assim como os demais campos da economia e da cultura, a literatura sofreu os abalos da covid-19. O conjunto de setores envolvidos com essa área de expressão – desde os escritores até as editoras, as livrarias, os eventos literários – está tendo de se adaptar: desenvolve novas estratégias para o presente e tenta elaborar como será o futuro

Para mapear esses movimentos, conversamos com Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL) – organização que faz a Bienal Internacional do Livro de São Paulo –; com Mauro Munhoz, diretor artístico da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip); e com a diretora do projeto p-o-e-s-i-a.org, Beatriz Azevedo. As entrevistas fornecem um panorama de uma área grande e multifacetada.

Além disso, ressaltamos, por meio de um depoimento de um filho escritor sobre seu pai escritor, as perdas irreparáveis causadas pela pandemia: André Sant’Anna fala um pouco de quem era e do que fica de Sérgio Sant’Anna, falecido em maio por decorrência do novo coronavírus.

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O impacto sob o mercado literário

“Num primeiro momento, todo mundo ficou assim cético: e agora?”, conta Vitor Tavares sobre os efeitos do isolamento social sobre o mercado editorial. “Parou tudo mesmo, fechamos todas as lojas, deixamos todos os nossos profissionais de quarentena, diminuímos as publicações”, diz.

O presidente da CBL aponta que “no primeiro mês as vendas caíram muito, por volta de 40%”, e que quem mais foi abatido foram as editoras e livrarias pequenas, principalmente as que não estavam preparadas para vender pela internet. Seja pelo e-commerce próprio ou por meio de outras plataformas, as editoras, de acordo com ele, conseguiram atingir 70% do seu rendimento anterior; já as livrarias se recuperaram “passo a passo”, aumentando o faturamento até, no terceiro mês, cerca de 40% do alcançado em 2019. Com a reabertura, esse número subiu até 50%, mas regrediu novamente, também por conta de horários reduzidos de funcionamento.

A queda e a recuperação demorada atingem um campo produtivo que já era caracterizado por dificuldades históricas. Como atesta Vitor, “vender livro, trabalhar livro no Brasil sempre foi um desafio”. De acordo com ele, a média de leitura brasileira, levando-se em consideração o nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), é baixa: cerca de dois livros completos por ano. Obras de autores pouco conhecidos têm tiragens de 1.000, 500 ou menos exemplares e “se o livro não pega não vende mais que 300, 200”. Segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, desenvolvida pela CBL, foram vendidos 352 milhões de obras impressas em 2018 no país (levantamentos com respeito a e-books e audiolivros devem ser lançados em breve).

O setor, projeta Vitor, ainda deve sentir o baque por um tempo. Pondera ele: “Penso que para voltar ao que era vai demorar bastante. Acredito que neste ano a gente chegue por volta de uns 80%, quiçá em meados do ano que vem a gente se aproxime do faturamento do ano passado”.

Adiamentos de grandes eventos literários

Outra medida do impacto da crise sobre o ambiente das letras é o fato de que dois eventos que marcam o cenário literário nacional foram postergados: a Bienal do Livro de São Paulo, que seria no segundo semestre deste ano, só ocorrerá em 2022; a Flip, tradicionalmente feita no início de julho, deve acontecer em novembro. Pela escala desses encontros, já a opção de adiá-los carrega complicações, desde a ponta do planejamento até a da execução.

“Não foi uma decisão fácil”, narra Mauro Munhoz, “levando-se em consideração a importância que a Flip assumiu no cenário cultural brasileiro e para a economia local, em Paraty”. Diretor artístico da festa, ele conta que “o programa principal já estava em boa parte definido, em negociações finais com muitos autores, alguns anunciados, como o nigeriano Chigozie Obioma e o americano Danez Smith”. Vitor Tavares, comentando a escolha no caso da Bienal, ressalta: “Tínhamos de costurar tudo com muito cuidado, porque envolve muitos contratos, muitos autores”.

Continua ele, “uma feira desse tamanho é preparada com três, quatro meses de antecedência. Tem ações que nós precisamos fazer um a dois anos antes; a gente não consegue, por exemplo, uma grade com autores internacionais se não fizer os convites 12, 13, 18 meses antes do evento”. Mauro também sublinha “a cadeia de produção envolvida – convidados, parceiros, apoiadores, fornecedores, equipe”. Com variações de grau, podemos supor que tais dificuldades atinjam todos os eventos do tipo. Todavia, Mauro entrevê no momento chance de renovação.

“O impacto é forte”, elabora o diretor artístico, “mas se há um eventual aspecto positivo nesta dramática situação é a reflexão obrigatória sobre o que temos feito até agora e o que podemos fazer diferente. Os festivais literários estão sendo confrontados com a inviabilidade no plano físico, sem saber quando poderão reunir seus públicos outra vez, mas por outro lado estão sendo forçados a explorar as alternativas infinitas da dimensão virtual. O que é muito bom”.

Limites e potências da migração para o on-line

Questionamos Vitor Tavares e Mauro Munhoz sobre o que se perde e o que se ganha com essa transposição dos eventos literários para os ambientes digitais.

Para o presidente da CBL, “a maior perda é a necessidade do ser humano de encontrar pessoas. Nós vamos perder esse encontro mágico que a literatura provoca: o leitor e o escritor, o escritor e o público – isso é muito interessante, é emocionante”. Por outro lado, ele destaca que com os dispositivos on-line o acesso é facilitado; esse modelo “democratiza muito mais”. Vitor anuncia que está sendo pensada uma edição on-line da Bienal, sobre a qual devemos ter novidades no próximo mês. “Se não for neste ano, no mínimo no primeiro semestre de 2021; não vamos deixar o público leitor, o autor e o editor passarem em branco”, afirma ele.

No caso da Flip – que já conta com transmissões das suas mesas –, realizar-se só no digital tem complicações próprias: sendo, como Mauro reforça, “uma manifestação cultural, mais do que um evento”, a festa agita a vida de Paraty de forma intensa e dá ensejo a diversas programações paralelas. Consiste tanto em participar das conversas sobre cultura quanto em vivenciar as ruas de pedra e o ar praiano. Essa descrição traz a pergunta: o que a internet não consegue suprir?

“Essa é uma boa questão que leva à raiz do problema que estamos enfrentando”, comenta Mauro, “a crise associada à supressão do espaço público tem sido agravada ainda mais pelo controle e pela manipulação perversa das redes sociais, criando a ilusão de que aquilo que acontece na bolha digital é a totalidade do mundo”. Ante a isso, prossegue ele, “é preciso entender os recursos digitais como representações e não como alguma coisa que substitui a realidade. A Flip não saiu programando atividades on-line, com a urgência de tantos eventos, para compreender melhor a natureza da dimensão virtual e se estabelecer em meio a essa confusão. Estamos trabalhando no campo da linguagem para que haja maior clareza sobre o que de fato se dá, no plano virtual, como a expressão artística da experiência dos nossos corpos no espaço real compartilhado”.

Solidariedade e apoio aos profissionais das letras

Para além do reposicionamento dos meios de circulação da cultura, a pandemia parece ter dado ênfase à necessidade de estruturas de apoio a quem faz o setor funcionar. Um exemplo de ação nesse sentido é o p-o-e-s-i-a.org, projeto criado pela poeta, musicista e diretora de teatro Beatriz Azevedo e pelo poeta e editor Sergio Cohn. O propósito é oferecer bolsas de auxílio emergencial a poetas sob risco financeiro neste contexto, assim como constituir instrumentos de difusão e fortalecer uma rede de leitores, escritores, professores e outros interessados em literatura. O p-o-e-s-i-a.org promove atualmente uma campanha para financiar sua efetivação.

Beatriz nota que “com a escassez de políticas públicas e institucionais voltadas para a literatura, é fundamental criar iniciativas que viabilizem a sobrevivência e dignidade de poetas, artistas e trabalhadores da cultura. A constituição de bolsas de amparo a poetas é essencial, e isso vai além do momento extremo que vivemos, por ser essa uma área com poucos retornos comerciais e incentivos institucionais”. Para esse trabalho, diz ela, “atuaremos junto a comissões formadas por participantes das cinco regiões do país, além de representantes de literatura da periferia, negra, indígena, de mulheres, LGBTQI+, da terceira idade, de pessoas com deficiência etc. – visando garantir a diversidade, a pluralidade e a amplitude das ações”.

Perguntamos à artista: por que apoiar a poesia em um momento como este? Muitos poderiam ter essa proposta como secundária, factível só quando questões ditas mais urgentes fossem resolvidas. “A poesia”, defendeu ela, “tem um enorme poder de reinvenção das estruturas de linguagem e da vida social. Força de reestruturação dos significados, a poesia pode nos fazer caminhar por outras direções”. De que maneira age esse poder renovador? “A maioria dos problemas que enfrentamos hoje advém da desumanização; há uma lógica de mercantilização da existência que determina a insensibilidade com a dor alheia. Teremos de ver o outro, sair de nós mesmos, da nossa ilha”. Dado isso, é essa “arte exata que sintetiza sentimentos e sensações imensuráveis, a poesia como arte reflexiva”, que pode “restaurar a capacidade de enxergar além de si”. 

Há outros projetos atuando para dar suporte aos profissionais do campo literário. Vitor Tavares informa sobre o Retomada das Livrarias, organizado pela CBL para arrecadar fundos para pequenas e microlojas do setor – segundo ele, serão alcançadas “entre 30 e 50 livrarias”, que vão receber 5 mil reais no primeiro mês e mais 5 no segundo, “se houver saldo”. Além dessa, foi lançada hoje a campanha +Livros, em prol de editoras e livrarias independentes.

Como construir o pós-pandemia?

Diante desse cenário, quais são as perspectivas para a literatura? Na visão de Beatriz Azevedo, o “novo normal” é já: “A pandemia revolucionou as comunicações e outros comportamentos do cotidiano. Qualquer cenário será influenciado pelas atitudes que vamos tomar hoje. Mesmo quando houver uma vacina, sempre haverá o risco de outro vírus de proporções semelhantes ocorrer, ou ainda outros acontecimentos inesperados. Por essa razão é tão importante perceber que a pós-pandemia é agora, ou seja, este momento 'pós' está sendo construído. Muitas vezes esquecemos disso e deixamos a esperança ou o pessimismo em relação ao futuro vencerem a racionalidade. Mais do que nunca é preciso estar com os pés no presente”.

Especificamente quanto à literatura, ela se refere à multiplicidade de ações virtuais que ganham hoje peso maior, e avalia: “É genial poder ouvir um poeta de outro estado, fazer cursos virtuais. Disso não podemos abrir mão; viajar nem sempre é possível e consome altas taxas de carbono; apresentações virtuais serão cada dia mais comuns e necessárias”. Nisso, porém, há problemas: “A maioria ainda não sabe como monetizar esses espaços, precisam se profissionalizar”. Beatriz indica ainda que “por outro lado, esse movimento é também perigoso, pois pode fazer com que escritores que não dominem essas técnicas virtuais sejam mais marginalizados do que já são”.

Já Mauro Munhoz considera essa questão por dois vieses: “No plano simbólico, as perspectivas são as melhores. A cultura e as artes têm um papel fundamental na reimaginação do mundo em momentos de crise. Penso que a demanda social por elas será enorme. No plano material, pragmático, as dificuldades serão ainda maiores”. Como exemplos dessa problemática, ele se refere aos campos da operação logística e da captação de recursos.

A logística, ele diz, “permanecerá incerta ainda por um bom tempo, à espera da consolidação dos protocolos sanitários, do estabelecimento de novas regras para entrada e saída de países em estágios diferentes de combate e controle da pandemia e até dos humores diplomáticos”. Por sua vez, a captação vive “um cenário de menor arrecadação e de maior disputa pelos recursos disponíveis, sobretudo por outras áreas entendidas como prioritárias, como é o caso indiscutível da saúde, da segurança alimentar, das rendas emergenciais”.

Seja como for, as portas para esse tipo de produção não estarão de todo fechadas: “Os parceiros da Flip entendem que a cultura tem um papel fundamental no estabelecimento de novos caminhos a mediar a relação com o mundo real”. Alinhado com uma declaração anterior de Beatriz, Mauro propõe: “É no plano das artes que as subjetividades se legitimam, em que a diversidade se estabelece. Não há futuro sem diversidade. A objetividade sozinha não dará conta dos grandes desafios que temos pela frente”.

Por fim, Vitor Tavares reafirma a tarefa de fortalecer o mercado literário. “Temos de continuar fazendo ações – tanto o governo como nós, profissionais do setor – para desenvolver o hábito e o prazer da leitura. Se você desenvolve isso, principalmente nos jovens e nas crianças, você vai formando leitores”. Formar leitores, insiste ele, é a condição da solidez e ampliação da área: “Se em um espaço de cinco, seis, dez anos, a gente conseguisse dobrar esse índice [de dois livros por pessoa ao ano], a gente teria de dobrar a produção literária, a gente iria precisar de mais autores, mais editoras, mais gráficas, mais plataformas para disponibilizar as obras”.

A tragédia brasileira

A seção anterior indaga como construir o pós-pandemia; implica considerarmos o que foi perdido e o que pode ser refeito no futuro. Ao lado desse tipo de ponto de vista, é preciso colocar a evidência daquilo que não será recuperado. Enquanto esta matéria é escrita, as mortes causadas pela covid-19 somam 72.833. Entre as vidas perdidas, estão nomes que marcam a cultura brasileira, como o escritor Sérgio Sant’Anna, falecido em 10 de maio – o título deste bloco é de um dos seus livros. O filho de Sérgio, André Sant’Anna, também escritor, nos contou sobre como tem sido a vivência deste momento e sobre o que permanece.

“Nem sei se ele chegou a saber que estava com o corona”, diz André, “ele estava com sintomas de gripe, falei com ele na véspera de ser internado no hospital. Ele comentou sobre a gripe, mas achava que não era covid. No dia seguinte, começou a passar mal, sentir falta de ar. Resistiu um pouco para ir ao hospital, mas passou mal e acabou indo com a cuidadora”. A distância e as condições do isolamento social impediram o adeus final: “Moro em São Paulo e minha irmã em Ubatuba. Nem pudemos ir ao Rio, visitá-lo no hospital ou participar do sepultamento, que não teve cerimônia, família ou amigos. Isso de não ter despedida é muito estranho mesmo. Até agora não fomos ao Rio, abrir o apartamento, ver as coisas dele, os textos que deixou etc.”.

Sérgio não era alguém desatento ao corpo. “Meu pai tinha problemas de saúde, principalmente na área vascular. Alternava entre se cuidar e não se preocupar muito. Eu diria que ultimamente estava num momento razoável. Mas, de fato, acho que ele sobreviveu a vários problemas por ter esse excesso de preocupação. Ele acabava sempre chegando ao médico antes de acontecer algo”. O diagnóstico, assim, veio com certa surpresa: “Primeiro é o susto. Não achávamos que fosse pegar covid, pois saía muito pouco de casa. Sei que saiu umas vezes para andar, passar no caixa eletrônico”.

O que nós perdemos com a morte de Sérgio? “Como pessoa, perco um pai que era quase irmão. Moramos juntos muitos anos, batendo papo no café da manhã, comentando os telejornais, indo ao cinema, ao teatro, trocando livros etc. Era uma pessoa completamente transparente e muito simples. Um cara completamente sem vaidade, que nunca fez pose de nada.”

No que tange à literatura, o escritor fala: “Só lamento porque ele estava muito ativo, escrevendo muito e ainda conseguindo propor coisas novas, se renovando. Mas, de qualquer forma, deixou uma grande obra, com mais de 20 livros, fora o que devo encontrar quando for abrir as centenas de pastas, cheias de textos, que ele deixou no apartamento dele”. De acordo com André, Sérgio deixou “um livro pronto, com uma novela e vários contos”, que “deve ser editado em breve”. “E tem esse material que ele deixou no computador. Vamos ver o que é. Estou na expectativa.”

André também comentou como foi viver o distanciamento e como vê sua obra no porvir: “Bem, literatura é uma atividade que se faz no isolamento. Eu até achava que ia ser um bom momento para escrever um livro, um romance, já que os trabalhos que faço para ganhar dinheiro estão raros. Mas é uma época estranha, teve a morte do meu pai, trabalhos de teatro e cinema que foram interrompidos, insegurança quanto ao futuro. Tá difícil produzir, mas estou tentando”.

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