Um papo com Dodi Leal sobre transgeneridade, corpo, tecnologia e arte
12/06/2022 - 09:00
por William Nunes de Santana
“Acho importante ressaltar de alguma forma o lugar que é e o que significa uma travesti ciborgue ser premiada com o seu trabalho artístico. Então, estou aguardando os prêmios chegarem em minha casa”, brinca – ao mesmo tempo que fala sério – Dodi Leal. Performer e professora de artes cênicas, Leal está pronta para rodar o Brasil com seu espetáculo Traved, uma palestra-performance, com direção de Robson Catalunha, em realidade virtual que interroga cenicamente o estatuto das biotecnologias da cena teatral atual. “É um trabalho que merece circular e chegar a outros campos no país”, ela afirma.
A narrativa parte de um episódio fatídico: um acidente de bicicleta, aos 30 anos, que não apenas a transformou numa ciborgue, como também a fez entender sua transgeneridade. “A minha transição e o acidente coincidem”, diz Leal – hoje aos 37. Entre os temas em pauta no espetáculo estão o binarismo – real e virtual, corpo e tecnologia – e o corpo trans. O espectador é convidado a experienciar a performance por duas perspectivas: a partir da palestra-performance, protagonizada ao vivo, e por meio de uma narrativa audiovisual, acompanhada em óculos VR.
A artista apresenta Traved no Itaú Cultural (IC) neste mês de junho – em apresentações fechadas para convidados – e em julho, durante a programação aberta ao público de Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade, que acontecerá de 27 a 31 do mês em questão (mais informações em breve).
Nesta entrevista ao site do IC, Leal fala sobre o espetáculo e sobre como rompeu a barreira do binarismo do real e do virtual, do corpo e da tecnologia.
Vamos começar pelo começo mesmo. Como você se envolveu com as artes da cena?
Essa história remonta à minha adolescência, talvez até a infância. Eu vivi na periferia da Zona Leste de São Paulo, na Cohab de Itaquera, e o acesso principal aos meios de cultura na época era a televisão. De vez em quando vinha o circo, mas não existiam centros culturais na região, apenas um parque onde aconteciam alguns shows, principalmente para adultos. Quando fui me tornando adolescente, me identifiquei com o programa Chiquititas – depois até me tornei presidenta do fã-clube [risos] – e acabei me envolvendo com as artes da cena. Tinha o sonho de fazer novela. Aos poucos ele foi se desfazendo, principalmente por causa da experiência teatral.
Eu pude fazer teatro na escola durante o Ensino Médio. Participamos de um festival de cultura e esporte com as melhores escolas de São Paulo. A minha era a única [escola] estadual, a EE Prof. Ascendino Reis, que ficava no Tatuapé. Nós apresentamos um espetáculo de teatro, que foi meu primeiro trabalho, aos 14 anos, e ganhamos o primeiro lugar. Eu tenho muito orgulho, porque foi o único prêmio que ganhei na minha vida até hoje, já com 37 anos. Fiz de tudo, mas nunca mais fui premiada, quem sabe com Traved.
Quais são as narrativas presentes em Traved?
Este é um espetáculo muito sensível e delicado; costumo até brincar e dizer que este é um espetáculo canceriano [risos]. Ele leva a muitas emoções profundas e íntimas, ao mesmo tempo que fala da relação com a família, com o próprio corpo, com o choro e com a transformação a partir de um acidente. O principal tema é o acidente que eu tive de bicicleta, aos 30 anos, e como ele me transformou em um corpo ciborgue, porque eu passei a ter ferro dentro de mim no cotovelo direito. É uma placa de titânio com oito parafusos, três fios de Kirschner [pinos] e uma banda de tensão para amarrar.
Esse material cirúrgico, que já está dentro de mim há sete anos, entra em mim na cirurgia no contexto do acidente da bicicleta; e esse acidente me leva a uma percepção da minha transgeneridade.
É a partir da construção do meu corpo deficiente que eu também compreendo a minha transgeneridade; pela limitação do movimento eu percebo a necessidade de elaborar a minha poética trans. Sempre me vi como uma menina, mas nunca tinha tido a oportunidade de reivindicar publicamente essa identidade. Então, eu falo sobre isso e aproveito esse material de experiência vivida para apresentar uma palestra-performance em realidade virtual. Todos esses conteúdos acabam sendo conceituados, teorizados e refletidos. Eu tomo essa potência carne-ferro dentro de mim para criar perspectivas sobre mim.
Traved surgiu de uma tese sua, Biotecnologias da cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas. Como foi sua trajetória acadêmica até a chegada desse momento?
Eu fiz doutorado em psicologia social na USP [Universidade de São Paulo], que foi uma experiência interessantíssima de estudos e de aprofundamento das artes da cena pela perspectiva da psicologia social comunitária e crítica. Eu chego ao espetáculo e à tese – na verdade, quando estava fazendo a tese ainda não tinha a ideia do espetáculo –, mas conto muito do acidente na tese, porque, como eu disse, foi o que me proporcionou uma percepção da minha transgeneridade. Eu começo a analisar as produções cênicas a partir da óptica trans nessa tese, e esse material me acompanha também no espetáculo.
O espetáculo trata de conceitos binários, como o real e o virtual, o corpo e a tecnologia. Como você se coloca nessa questão?
Como digo durante a performance, na Revolução Industrial, segundo [a filósofa] Silvia Federici, a primeira máquina criada foi o corpo humano. E eu sinto muito isso na minha própria vivência, de ser máquina, de ser ferro e de ser ciborgue. Não consigo mais identificar essa diferenciação entre orgânico e maquínico, porque esse binarismo não me diz respeito, assim como também começo a enxergar fora de mim que a maquinaria da cena teatral, por exemplo, ou qualquer outro conjunto de máquinas, são entidades orgânicas.
Assim, tenho interpretado refletores de luz – sou iluminadora teatral também –, eu enxergo o refletor como uma peça de carne e a luz como uma entidade viva. Nesse sentido, até porque utilizamos a tecnologia dos óculos 360 graus, a gente provoca sensações de outras percepções da realidade a partir da virtualidade, porque ali tem muita vida. Os óculos são, também, entidades. A força que aparece na digitalidade dos óculos tem essa corporificação, ou seja, é uma virtualidade incorporada – e completamente arretada.
Como as narrativas audiovisuais foram criadas para a parte virtual do espetáculo?
O espetáculo como um todo tem a dramaturgia baseada no texto teórico que escrevi, como falamos, Biotecnologias da cena, que serve de componente de conteúdo. O Robson Catalunha, diretor de Traved, roteirizou esse texto para a cena audiovisual. A gente fez algumas gravações para a primeira temporada, realizada no Centro da Cultura da Diversidade [em São Paulo] em novembro de 2021 – fruto de uma residência artística em realidade virtual que eu estava fazendo. Gravamos com câmera 360 graus em espaços públicos e privados, em parques, espaços teatrais e no quintal da casa da minha mãe. Depois fomos acrescentando novas cenas, porque a ideia é que o trabalho se atualize a cada lugar em que a gente se apresente e a cada contexto.
Como você vê esse movimento de espetáculos que estão incorporando e discutindo realidade virtual? O que você tem visto de interessante por aí?
Eu confesso que as obras que acompanhei on-line durante a pandemia me geraram muitas sensações controversas. De um lado, a necessidade de estar conectada com uma cena, que muitas vezes vem com uma óptica da gravação do espetáculo, e, de outro, os trabalhos produzidos no contexto da webcam, da câmera ao vivo, que de alguma forma podiam dialogar com essa estética.
Seja como for, sentia um certo binarismo, porque era uma performance presencial, como a gente conhecia antes da pandemia, ou uma apresentação em telas 2D, no computador ou no celular, construída para aquele contexto. Mas elas não dialogavam entre si.
Então, parece-me que Traved vem numa perspectiva de hibridismo dessas diferentes experiências, em óculos que estão presentes ao vivo, mas ao mesmo tempo é tela, é performance e palestra. Junta todos esses materiais em um único contexto – ou seja, é também possível experienciar Traved a distância, mas o espetáculo funciona no aspecto da presença e com a encantaria das telas presentes.
Para você, como foram os anos de pandemia? E como está sendo essa volta aos palcos presenciais?
No começo foi muito desafiador, acho que para todo mundo, sem muita perspectiva de como a gente voltaria a fazer arte. Eu moro em Santo André, [um vilarejo] em Porto Seguro, na região sul da Bahia. Lá a gente não tem financiamento para a produção artística, o que só atenua a situação. Eu, como professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) – com dedicação exclusiva à universidade e tomada pelos processos de pesquisa e de ensino de extensão –, não vejo nenhum estímulo para que os docentes de artes façam arte na universidade. E, nesse sentido, para não deixar morrer a nossa arte, precisamos encontrar meios de fazer nossa poética. Foi do meio do ano passado para cá que eu comecei a retomar os processos de criação – sem subsídio nenhum da universidade, sem nenhum tipo de suporte, apenas com autonomia e investindo no meu trabalho artístico – e estou extremamente realizada. Percebi, inclusive, que aconteceu um feitiço tão grande nesse meu retorno para a cena que eu não quero mais sair. E não quero nunca mais parar de fazer, de estar em cena.