por William Nunes de Santana

 

Para o sambista, historiador e antropólogo Vinicius Natal, o samba é um modo de vida e de estar no mundo, de ser e pertencer. A vida do sambista se pauta pelo samba – e não o contrário –, porque “ele pensa o mundo a partir do samba, de suas letras e, principalmente, do seu cotidiano”, explica, antes de complementar: “Você tem pensamentos políticos a partir do samba, não necessariamente político-partidário, mas pensamento político de estar no mundo. Você tem debate sobre condição racial, de gênero, de classe”.

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Mulher negra aparece de close, de lado, em foto preto e branca. Ela é idosa, está séria e usa um lenço na cabeça.
Clementina de Jesus nasceu em Valença, no Rio de Janeiro (imagem: divulgação)

Vinicius, em parceria com o também sambista, antropólogo e pesquisador Mauro Cordeiro, criou o site Pensamento Social do Samba, no qual o pensamento e a reflexão se constroem com base na prática. É nesse contexto que podemos compreender a importância de Clementina de Jesus para a cultura brasileira. A Rainha do Quelé sintetiza a reflexão acima por meio de sua trajetória e seu repertório – ambos construídos, principalmente, a partir de sua própria natureza.

“A trajetória da Clementina se constrói através de uma herança africana ressignificada no Brasil, já uma herança afro-brasileira. Clementina demonstra uma consciência política e racial muito forte, mas ela estava apenas sendo ela o tempo todo”, comenta Vinicius. “Sua biografia demonstra várias passagens em que as pessoas ficavam muito chocadas com a naturalidade com que ela tratava o preto pobre, mas ela pertencia àquele grupo e o entendia como pessoas iguais. O fato de ter gravado discos e feito alguns shows, apesar de ela ter sido pouquíssimo reconhecida ainda em vida, não a tirava desse prumo.”

Clementina de Jesus é natural de Valença, no Rio de Janeiro, descendente de escravizados e alforriados. Como tantas outras pessoas negras nascidas antes ou no começo do século XX, seu ano de nascimento é incerto – 1901 ou 1902, não há registro fidedigno. Era um 7 de fevereiro, assim como este.

Sabe-se, porém, que desde criança conviveu com canções em língua banta – de origem africana – e aprendeu com sua mãe cantigas, ladainhas, benditos e outras manifestações musicais que fazem parte da cultura popular e de um cancioneiro que expressa e transmite tradições por meio da oralidade. Esses elementos se tornaram fundamentais para a maneira como interpretamos a vida e a obra da cantora décadas mais tarde, sempre reconhecida pela ancestralidade tão presente em sua figura e suas canções.

“Ela foi, de fato, um elo fundamental entre a música rural afro-fluminense, com seus cânticos do ciclo natalino, de reisados, congados etc., e o tipo de samba carioca outrora rotulado como samba de morro, um pouco anterior à difusão da radiofonia, em que a modalidade do partido-alto, com versos solados de improviso a partir de um refrão, teve grande proeminência”, afirma Nei Lopes, compositor, sambista, escritor e pesquisador da cultura afro-brasileira. “Ancestralidade é transmissão de força, de geração para geração. Então, Dona Clementina, graças, sobretudo, ao esforço de Hermínio [Bello de Carvalho], seu descobridor, foi realmente a ligação entre esses dois momentos de força.”

Clementina cantou, especialmente, sobre a realidade da população negra. Inevitavelmente, trouxe questões raciais e sociais à tona – como nas faixas “Mulato calado” e “Torresmo à milanesa” e no álbum Canto dos escravos (1982). “A história do samba é pautada por uma afirmação negra. Essa nuance de como esse samba de crítica social, e essa figura da Clementina, é visto – e entendido – é o que precisamos compreender”, diz Vinicius Natal. “Ela não é só – ela é também – uma cantora muito importante que faz parte da indústria do entretenimento. Muito além disso, ela é essa figura de uma mulher negra e que começou a gravar com idade avançada, que está denunciando as mazelas sociais sofridas por uma parcela muito significativa dos negros após a abolição. Ela tem um papel político ao cantar e se apresentar no palco.”

Para o antropólogo, é importante diferenciar os caminhos pelos quais a Rainha do Quelé pode ser interpretada. Apesar de ela ser reconhecida por uma parcela da indústria por representar o pitoresco, Vinicius ressalta que – assim como Martinho da Vila e outros sambistas – Clementina traz ao seu público “influências de uma musicalidade afro-brasileira e afirma isso em suas canções”, por meio da música que ouvia dentro de sua casa, cantada por sua mãe. “Você tem, no início do século XX, uma grande migração de descendentes de escravizados, dos filhos e dos netos dos escravizados, que estão saindo do interior, saindo de Minas Gerais, em direção à capital da República na época, que era o Rio de Janeiro”, explica.

“Então, ela vem dessa leva, junto com diversos sambistas, com diversas famílias de outros sambistas que fizeram esse fluxo. Ela traz nessa bagagem musical as músicas que ouvia, as canções, os ritmos. E, quando vai gravar – isso é traduzido pela própria voz, pela própria forma de cantar e de se apresentar no palco –, traz essa bagagem para sua obra, porque, mais uma vez, isso é parte dela. Não é uma performance construída artificialmente. Clementina é aquilo”, complementa o antropólogo.

Lembranças vivas

Clementina estreou na música quando já tinha mais de 60 anos. Com Hermínio Bello de Carvalho na direção, participou do espetáculo Rosa de ouro em 1964, no Rio de Janeiro, junto com Paulinho da Viola, Nelson Sargento e outros artistas. Seu primeiro disco solo veio em 1966. Nei Lopes, nos seus 20 e poucos anos, relembra uma noite no Teatro Jovem, na Zona Sul carioca: “A montagem do musical Rosa de ouro era pobrezinha, mas a entrada de Clementina em cena foi apoteótica, surpreendente mesmo. Ao som de um rufo de atabaque, seu perfil era projetado numa tela branca, possivelmente um lençol comum, em contraluz. Seu vozeirão cantava o refrão do ‘Benguelê’, de Pixinguinha e Gastão Viana. Aquilo arrepiou todo mundo, mexendo muito comigo”.

A segunda lembrança é de meses depois daquela noite nos anos 1960, quando Clementina, com João da Gente – “outro vozeirão da Portela”, comenta Nei –, na Escola Nacional de Música, da antiga Universidade do Brasil, ilustrou uma palestra de Hermínio. “Após a apresentação, fui cumprimentá-la e ela, que me via pela primeira vez, chamou a atenção do marido, o sambista mangueirense Albino Pé Grande, com a surpreendente frase: ‘Pé, olha aqui o irmão do Elton!’. Isto em um tempo em que eu e o saudoso Elton Medeiros tínhamos, entre nós, algumas semelhanças físicas, potencializadas pelos óculos.”

Segundo o pesquisador, é preciso promover a obra da artista ao alcance de todas as possibilidades, algo que, infelizmente, ainda não aconteceu. “No Brasil, isso é sabidamente difícil, embora não impossível. A obra completa de Clementina de Jesus, reunida em oito álbuns, com o conteúdo de seus lançamentos em selo Odeon, representa um acervo de valor inestimável em termos de música popular e de cultura afro-brasileira, digno de todas as proteções e garantias constitucionais”, declara. “É aquele tipo de musicalidade telúrica, vinda do chão que se pisa descalço. E que, bem aproveitada, se eterniza, dando oportunidade a muitos estudos e desdobramentos.”

É preciso trazer Clementina para o presente

Em 2019, Emicida trouxe um pouco dessa tradição oral para a sua música. “Canto II” – aqui interpretada por Dona Odete – abre a música “Eminência parda”, lançada no seu disco AmarElo. Para Vinicius Natal, a graça da história é exatamente voltar ao passado com novas perguntas para ele. Isso acontece porque o presente sempre gera novas perguntas sobre o que aconteceu no passado.

“Tenho uma preocupação muito grande com essa necessidade de evidenciar essas trajetórias negras no samba, porque muitas vezes a gente fala sobre samba e, às vezes, não conhecemos quem está cantando ou quem é o compositor. Fala-se de Clementina, de Monarco, de Cartola, de Zeca da Cuíca e de vários outros de maneira muito superficial – de que eles cantaram músicas de preto, músicas de escravizados e ponto”, exemplifica. “Essa é uma visão rasa que pensa fora de um contexto da negritude, do contexto do racismo e do que representava cantar samba e ser um sambista negro no século XX, porque o século XX é inteiro atravessado pelo fantasma da escravidão.”

Enquanto esse fantasma não abandona a sociedade, ele constrói efeitos racistas que perduram até hoje. Perder esse fato de vista é um dos motivos para tantas trajetórias ocultadas. “Tenho cada vez mais essa preocupação de que há essa necessidade de a gente entender Clementina, Jovelina, Nelson Cavaquinho, Cartola, Martinho da Vila, Silas de Oliveira e Heitor dos Prazeres como grandes intelectuais, grandes pensadores, grandes atores políticos, que usaram o samba como uma forma de afirmação política e social no Brasil e, mais ainda, utilizaram o samba não só como um projeto de afirmação de suas figuras artísticas ou de suas personas artísticas, mas também como um projeto coletivo de país. Um projeto coletivo de representar o samba como essa ideia de herança afro-brasileira, de afirmação do negro na sociedade e de combate ao racismo. Se em muitas vezes isso não estava dito nas canções, estava posto na corporalidade, na voz, nos instrumentos musicais, no ritmo”, afirma o antropólogo.

“Clementina representa que, através da voz, do canto, de suas músicas, do seu corpo – que é o corpo de uma mulher velha e negra –, independentemente dos escravizados, é trazido um pouco dessa máxima de pensar o mundo a partir do samba, do jongo, do calango e de outros ritmos, que são ritmos da diáspora”, finaliza Vinicius.

Quatro perguntas para a documentarista Ana Rieper, diretora de Clementina

Lançado em 2018, o documentário Clementina está disponível gratuitamente na Itaú Cultural Play. Por meio de entrevistas com parceiros e muitas imagens de arquivo, que captam a artista na intimidade, o filme desvenda o seu universo próprio de representação da cultura negra.

Sabemos que uma história pode ser contada de várias perspectivas e pontos de partida. Qual é a história que o documentário traz?

Um dos grandes desafios do pensamento para construir esse filme foi justamente o de encontrar um caminho narrativo a partir do desejo de fazer um documentário sobre a Clementina de Jesus. Essa personagem abre tantas portas que dão sentido ao nosso mundo que falar sobre Clementina me parecia ser algo como falar sobre o universo – muito vago como proposta artística. Eu não entendia esse filme, que poderia ser considerado biográfico, como uma sequência de efemérides marcantes na vida da personagem. Esse tipo de construção narrativa não me parecia propício a um aprofundamento daquilo que faz com que Dona Clementina seja tão importante, tão contundente. Durante o desenvolvimento do roteiro e da pesquisa, nós da equipe de realização do filme buscamos os aspectos da vida familiar, cotidiana e artística que dessem notícia da Clementina como uma pessoa que concentra em sua vivência aspectos importantes da cultura da diáspora africana no Brasil. Então, esse foi o ponto de partida, o fio da meada para nos debruçarmos sobre a vida e a obra dessa cantora fabulosa.

O que mais a impressionou em Clementina de Jesus?

Clementina é uma musicista de enorme talento e pessoa de grande carisma; é difícil eleger um aspecto específico. Improvisadora de mão cheia, muito respeitada nas rodas de partido-alto, com uma conexão bem forte com a espiritualidade, portadora de uma cultura musical e uma memória impressionantes. Foi interessante que o contato com um vasto material filmado, além de fotos, gravações de áudio e textos, nos deu a impressão de uma proximidade muito grande com a cantora. Parece que a conheci – e que pessoa encantadora, pela alegria, pelo humor afiado, pela perspicácia e doçura.

Minha impressão, vendo o documentário, é a de que, quando falamos sobre Clementina, não falamos somente dela. Ela traz consigo pessoas e histórias. Quais são esses elementos culturais que ela carrega? 

Como diz o Luiz Antonio Simas no filme, a cultura da diáspora africana é gregária, é de coletividade. E fomos percebendo o quanto esses elementos da cultura que Dona Clementina carrega fazem parte desse sentido de grupo. O jongo, o partido-alto, as festas de rua, as celebrações populares dos santos católicos, a umbanda e o candomblé, as escolas e as rodas de samba: todos eles manifestações que influenciaram e foram influenciadas pela vida e pela obra de Clementina de Jesus. Eu diria que Clementina é parte constitutiva da cultura negra carioca e fluminense.

Qual é a importância de manter viva a memória de artistas como Clementina?

Foi muito impressionante para mim – e mesmo estarrecedor – saber o quanto há de ignorância sobre quem foi e quem é Clementina de Jesus. Ignorância vinda inclusive de pessoas do meio artístico e musical. Fica evidente que há uma escrita da nossa história cultural atravessada pelo racismo. Clementina é uma pedra fundamental da nossa música, pedra de ouro. Não é aceitável que seja ignorada. Entretanto, sua memória e mesmo sua existência nunca serão esquecidas, nunca morrerão. A cultura do samba é muito viva, e nesse ponto de vista Clementina está entre nós. Mas sem dúvida é preciso que os diversos setores da sociedade atuem para que ela tenha o reconhecimento que merece.

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