Ciça Fittipaldi ilustra o mundo com pesquisa, imaginação e empatia
30/03/2020 - 19:30
por Heloísa Iaconis
No início, sapatilhas, não lápis: ainda menina, Ciça Fittipaldi gostava mesmo era de dançar. Estudante aplicada dos passos e das poses, ela foi primeiro capturada pelo balé. Tempos depois, entretanto, tendo sofrido um acidente que a tirou dos movimentos de plié, a jovem Ciça buscou outra expressão artística que pudesse canalizar a sua sensibilidade. Foi assim que a ilustração se mostrou em definitivo para a ex-bailarina: o desenho, que antes ela praticava de jeito esporádico, ganhou-a, enfim, por completo – tanto que, passados mais de 40 anos, Ciça é um nome respeitado da literatura infantojuvenil brasileira. Ora criando imagens para enredos alheios, ora construindo suas narrativas escritas e visuais, a artista concebeu uma obra alicerçada em pesquisa, imaginação e empatia – ferramentas que, quando unidas, levam autora e leitores para a ordem do maravilhoso.
A trajetória da desenhista, que envolve desde o gambá Naro até a moça Naninquiá, foi destaque em março no Cantinho da Leitura (cujas atividades, assim como toda a programação do Itaú Cultural, estão agora suspensas). No espaço, várias foram as crianças que descobriram os títulos da homenageada, avivando-os. Ciça bem sabe o quão fundamentais são esses encontros, gente com livro, livro com gente. Ela própria vem de uma família dada às bibliotecas: Savério Fittipaldi, seu avô, foi livreiro; Mário Fittipaldi, seu pai, inventou a Bienal do Livro. Nascido na Basilicata, região pobre da Itália, Savério deixou o país de origem para, no Rio de Janeiro, juntar-se a parentes que haviam emigrado em um período anterior à Primeira Guerra Mundial. No Brasil, alfabetizou-se em português e em italiano e achou duas grandes paixões: a literatura clássica e a história universal. Tornou-se editor e uma inspiração para a neta: “Sentada em seu colo, escutei histórias da mitologia grega e contos de fadas. Sinto que a pessoa do meu avô foi muito importante para mim”, diz Ciça. Quanto ao pai, Mário, ela recorda a relação dele com certa elite cultural paulistana, a começar pelo artista plástico Waldemar Cordeiro, de quem eram vizinhos. A casa, os arredores, uma conversa aqui, outra lá, um vai e vem de ideias formadoras.
E foi com essa base que Ciça ingressou na Universidade de Brasília (UnB), onde cursou arquitetura, na mesma época em que optou, de vez, pelo desenho. Em 1972, a então estudante precisava se sustentar na capital e, por isso, apresentou o seu currículo a um jornal. Contratada como ilustradora, permaneceu por dois anos na redação, experiência que a colocou diante de uma próxima tarefa, uma próxima, uma próxima... Todas na área dos traços no papel. Também na fase universitária, Ciça passou a frequentar, por puro interesse, aulas de pós-graduação em antropologia. No departamento de etnografia, aproximou-se de tal maneira das questões indígenas que, em 1975, recebeu um convite que a marcaria vida afora: participar de um projeto com o povo Nambiquara.
Ao chegar ao território-destino, contudo, a desenhista se deparou com uma situação difícil: “O general Bandeira de Melo, responsável pela Funai [Fundação Nacional do Índio], havia soltado documentos que atestavam a não ocupação de terras indígenas, de modo que a região foi tomada por latifúndios. O território dos Nambiquara ficou ilhado entre empreendimentos rurais e permanece descontínuo até hoje. Fora isso, a gripe dizimava aldeias: grupos com 280 habitantes foram reduzidos a 19 indivíduos”, recorda Ciça. Apesar do momento árido, à noite os Nambiquara se reuniam para cantar e transmitir força e alegria à comunidade. “Foi uma lição para mim. Em quatro meses, defrontei-me com tudo aquilo que não era eu: a forma de resolver problemas, a coerência entre o ser e a natureza. Nesse exercício de viver, aprendi e me encantei”, destaca a artista. E dos itens que a fascinaram um a fisgou em especial: a arte indígena.
Autêntica, poderosa e bela: eis qualidades que, para Ciça Fittipaldi, caracterizam a arte das populações originárias. Manifestações que em nada se confundem com os “ismos europeus” (como o simbolismo e o cubismo), carregadas dos tantos estados de alteridade que permeiam a subjetividade de seus sujeitos – o eu e o outro, outro que pode ser os mortos, os espíritos da mata, os animais. O maravilhamento com a produção indígena, porém, não faz com que Ciça procure imitar atributos que a deslumbraram. Ela se deixa influenciar por saberes e trabalhos, processo que, aliado a muito estudo e a um olhar atento ao próximo, faz nela florescer uma marca sua. Trata-se de um trajeto de formiga: devagar, com talento e cuidado, a autora da série Morená elabora uma obra profundamente humana.