por Duanne Ribeiro

Bibi Ferreira era um trator. No que se referia a questões éticas e profissionais, não abria mão dos seus valores e os exercia com firmeza. Bibi Ferreira era humanista. Conforme a arte do teatro pede, fundava sua prática no respeito ao outro. Bibi Ferreira era um mito. Por trás estava uma mulher “generosa, fraternal, amorosa”: Abigail Izquierdo Ferreira. Quem descreve assim a atriz e diretora, que completaria hoje 100 anos, é Jalusa Barcellos, autora da biografia Bibi Ferreira, a saga de uma diva, lançada neste 1º de junho.

No palco, diante de um pedestal com microfone, Bibi canta. Ela veste um vestido preto com um casaco vermelho. O fundo da imagem é escuro.
A atriz e diretora Bibi Ferreira (imagem: Sergio Castro)

Jalusa – jornalista, escritora, educadora e atriz, tendo sido dirigida por Bibi – conversou conosco sobre a personalidade e os critérios profissionais da diretora, responsável por ensinar “tudo ou quase tudo” que ela sabe sobre teatro. Além disso, descreveu a criação do livro, desde o pedido de Bibi por uma “biografia afetiva”, escrita por uma amiga que a “conhecia como ninguém”, até a publicação pela Fundação Cesgranrio. Na entrevista, os valores da generosidade, da alegria de viver e da atenção ao próximo são realçados.

Nascida em 1922, Bibi Ferreira morreu em 2019. Desde a infância envolvida com as artes cênicas, atuou no teatro e na televisão. Na sua carreira, destacam-se os musicais, como Piaf, a vida de uma estrela (1983), sobre a cantora francesa Edith Piaf. Veja abaixo uma apresentação sua no Auditório Ibirapuera, casa de shows então gerida pelo Itaú Cultural (IC), na qual ela retoma seus sucessos. Saiba mais sobre a sua trajetória na Enciclopédia.

Como foi o processo de produção da biografia? Pelo que uma entrevista sua indica, você já tinha conversas com Bibi sobre fazer esse livro e começou a produzi-lo em 2018, quando ela saiu de um período no hospital. Gostaria que você contasse como foi o caminho de lá para cá.

O processo, por incrível que pareça, foi o mais simples possível. Num primeiro momento, ela ainda internada no hospital, eu, para animá-la, disse: “Ó, a gente tem muita coisa para fazer, muitos projetos, tem esse livro que você há 20 anos me cozinha e nunca marca quando é que a gente começa esse trabalho...” – ela abriu os olhos na cama e falou: “Vamos começar agora”.

Eu, obviamente, sabia que ali não era o momento para tratar do livro. Esperei ela sair do hospital. Doze dias depois, fui até a casa dela, e aí foi que ela me disse: “Faça uma biografia afetiva. Não tenho mais tempo nem saco nem memória para ficar relembrando 93 anos de carreira. Poucas pessoas gostam de mim como você. Você me conhece como ninguém e tem capacidade para isso”. Ela não disse, mas o que depois eu intuí [é que] ela estava me falando: mostre quem está por trás do pano, ou seja, mostre quem é essa mulher magistral, generosa, fraterna, amorosa que está por trás do mito “Bibi Ferreira”.

Eu fiquei um pouco desacorçoada [risos], não sabia por onde começar, tinha outros projetos em mente, quando encontrei acidentalmente na rua o Carlos Barbosa, editor da Patel, e disse para ele: “Não sei por onde começar e, principalmente, como começar, porque é um livro de muito fôlego, é uma responsabilidade enorme, e Bibi está me pedindo que costure essa biografia pelo viés do afeto. Então ele me respondeu com a maior simplicidade: “Procure seu amigo Ricardo Cravo Albin e peça que ele te leve a Carlos Alberto Serpa. Quem vai produzir esse livro é a Fundação Cesgranrio”.

E foi assim que aconteceu. Ricardo generosamente me levou ao Serpa, que em cinco minutos de conversa bateu o martelo, patrocinou o livro, desde a sua pesquisa até o meu trabalho de redação e, agora, finalmente, a edição, esta primeira edição. Então, além de ser uma biografia afetiva, é uma biografia produzida, criada, lançada, editada pelo viés do afeto, que era a marca registrada de Bibi.

Em um palco, do lado direito, Jalusa aplaude a imagem de Bibi Ferreira, cantando diante de de um microfone, que está exibida em um telão, em preto e branco.
A atriz e jornalista Jalusa Barcellos (imagem: Claudio Pompeu)

Essa é uma biografia afetiva. O que esse adjetivo indica? Como o livro se diferencia de um tipo de biografia mais comum? Ele parece indicar que o seu ponto de vista está mais presente do que o comum em uma obra jornalística – é isso, você é mais “personagem” da história?

Em absoluto. A biografia afetiva foi um pedido da própria. Seria uma distorção enorme ser um livro calcado na minha experiência com ela. Não se pode confundir afetivo com personalista, autocentrado ou autorreferenciado. Não. Eu me dou o luxo de, no último capítulo, mostrar um pouco dessa história nossa toda, partindo da primeira pessoa. No último capítulo, eu escrevo uma carta a ela, dizendo talvez as coisas que eu gostaria de ter dito ou que gostaria de ter refletido junto com ela ou gostaria de ter pontuado, e que não houve tempo para isso. O resto do livro são mais de cem entrevistados, mais de cem colegas, amigos, fãs, familiares, todo tipo de profissional de artes cênicas que me ajudou a compor esse perfil dessa mulher magistral, gigantesca, que sempre esteve por trás de Bibi Ferreira e que se chamava Abigail Izquierdo.

A partir das entrevistas que você fez para o livro, quais características de Bibi são mais ressaltadas? Que elementos do seu fazer artístico e da sua personalidade são ressaltados por aqueles que a conheceram?

É muito difícil, em 93 anos de carreira, em 96 de vida – sendo que as duas experiências se mesclam, se misturam, se complementam –, é muito difícil você buscar numa resposta só quais são as características de Bibi mais ressaltadas no livro. Claro que você está fazendo o seu papel, mas para mim é muito difícil de responder.

De cara, assim, a essência de Bibi, eu diria que é o tamanho da sua generosidade. Oriunda de um gigantesco humanismo, que, por sua vez, advém de um fantástico ser humano que tinha, nos valores morais e éticos – esses mesmos valores morais e éticos hoje tão em desuso – as molas mestras, os nortes da sua existência e da sua postura profissional.

Ela era essencialmente do humano. Eu até digo isso em determinado momento do livro, é por isso que ela e o teatro se misturam. O fazer teatral é um fazer do humano, para o humano e com o humano. Bibi tinha um rigor calcado na disciplina, no estudo, no respeito ao público, valores de que ela nunca abriu mão. Bibi era um trator quando se tratava de procedimento ético, de postura profissional. Tudo isso, agregado a um amor ao ser humano, deu no que deu, a genialidade de uma mulher que vai fazer muita falta, no meu entender, principalmente nestes tempos que nós estamos vivendo.

Também em entrevista, você disse que “tudo o que aprendeu em teatro foi com Bibi”. Gostaria que detalhasse um pouco desses ensinamentos. Que dicas, que práticas ela lhe passou? O que, do que ela ensinou, você considera importante que os artistas da cena saibam hoje?

É isso mesmo. Eu considero que tudo ­ou quase tudo que eu sei de teatro – eu também li muito, tive bons professores na faculdade – [eu aprendi com ela]. Quem me ensinou o ofício mesmo, essa beleza de ofício que é fazer teatro; essa beleza de ofício que tem como matéria-prima o ser humano e que, portanto, só você sendo um ser humano de uma grandeza relativamente interessante é que é capaz de exercer esse ofício; esse ofício que te permite ou possibilita vivenciar tantas personas, esse ofício que, para vivenciá-lo mesmo, com galhardia, é preciso que você nunca esqueça que, paralelamente a ele, mesmo que você esteja fazendo um drama de quinta categoria, você tem de ter um joie de vivre [“alegria de viver”, em francês] capaz de te segurar – tudo isso e muito mais, eu aprendi com ela.

Eu tive o privilégio de ser dirigida por ela algumas vezes, e Bibi não dirigia, Bibi dava aula. E era uma coisa tão espontânea, tão natural, fazia tanto parte dela que, quando você via, ela estava ali, orientando um, colocando a voz do outro no lugar, ensinando o outro a caminhar, ensinando que tal postura [era contraditória com tal personagem], e, ao mesmo tempo, somado a isso, ela era capaz de dizer que a luz não estava afinada o suficiente para sensibilizar a plateia naquele momento, com aquela emoção específica, porque tudo, tudo que dizia respeito ao fazer teatral, ela sabia.

E isso não sou eu que estou dizendo. Isso é voz recorrente no teatro brasileiro. Os iluminadores, os operadores de som, os contrarregras, os diretores de cena, as camareiras, os maquinistas, os cenotécnicos – todos tinham uma deferência em relação a Bibi muito singular [se comparada] com os demais diretores. Se ela desse um pitaco sobre determinado aspecto do espetáculo, ele era imediatamente acatado – primeiro, porque não era uma ordem: ela nunca dava exatamente ordem, ela perguntava, tinha um tom imperativo na fala, mas ela perguntava, sempre, ao profissional da área específica o que ele achava. E assim era conosco também, com os atores. [Como alguém que não me lembro agora disse], ela era uma escola de teatro viva. É pena, lamentável, que outras gerações não possam usufruir disso.

Nessa medida, eu me considero totalmente privilegiada.

Você conheceu Bibi por mais de 40 anos. Como descreveria o seu jeito, a sua personalidade? Pode contar alguma lembrança que você considera representativa de como ela era?

Olha, eu poderia – inclusive no livro, naquele último capítulo, teve uma hora em que eu pensei: tenho que parar de escrever – eu poderia contar muitas histórias a respeito da Bibi. Muitas. Vou contar só uma.

Ela me chamou para fazer um espetáculo infantil, uma superprodução. Eu acho que, no primeiro ou no segundo dia, comentei com uma colega que aquele chamado, aquele trabalho, aquele contrato tinha chegado na hora, na medida exata, porque eu sustentava dois filhos pequenos sozinha e [naquele momento] provavelmente não conseguiria nem fazer a compra do mês. Se essa colega comentou com ela, eu não sei; sei que, no dia seguinte, eu estava em casa, tocou o interno, o porteiro falou: “O motorista de Dona Bibi está aqui. Ele quer subir”. Ué, falei, “manda subir”, motorista da Bibi, né? Decerto, ela me mandou alguma coisa. Quando eu abri a porta, lá estava o motorista com uma marmita na mão. Entregou-me e disse: “Dona Bibi pediu para entregar”. Fiquei meio gaga assim e tal. Falei “obrigada” e, como eu tinha ensaio de tarde, “depois eu falo com ela”. Era uma comida deliciosa.

Cheguei ao ensaio e falei: “Bibi, não há necessidade. Não sei o que te fez mandar teu motorista lá em casa, está tudo bem” e tal. Ela me cortou – porque já estávamos na hora do ensaio, tínhamos que começar a trabalhar – dizendo o seguinte: “Olha só, lá em casa come muita gente, se faz comida para muita gente. Não me faz a menor diferença e eu vou continuar mandando”.

Então, todo dia eu trocava de marmita com o motorista. Ela só parou de mandar a marmita quando, no final do mês, saiu o primeiro pagamento. Aí eu cheguei pra ela, “Bibi, agora não tem mais sentido”, ela não falou nada, eu agradeci, ela também não respondeu nada – porque também não gostava muito dessa coisa de muitos agradecimentos e tal. Essa é a Bibi. Fez comigo como fez com inúmeras pessoas. Como fez com inúmeros colegas, funcionários de teatro. Todo mundo que passava, de alguma maneira, pela vida da Bibi, se ela pudesse ajudar ou se ela soubesse que a pessoa estava precisando, ela ajudava. Acho que isso define um pouco, né? A grandeza dela.

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