por Heloísa Iaconis
Durante uma turnê com a banda Devotos, ao pernoitar na Eslovênia, um garçom ofereceu a Cannibal um black coffee. A partir desse episódio, o músico começou a refletir sobre a sonoridade das palavras que nomeiam a bebida ofertada. Pensou, sentiu o som de sílaba atrás de sílaba, aportuguesou o termo e, assim, chegou ao título de um projeto que nasceria a seguir: Café Preto, disco lançado em 2012, obra paralela à realizada pelo primeiro conjunto. Diferentemente da Devotos, cuja estética abraça o punk-rock e o hardcore, o álbum em questão muito se inspirou na cultura jamaicana, especialmente no reggae e no dub. Junto com Pierre Leite e Bruno Pedrosa, Cannibal desejava mostrar outras facetas suas, mas não imaginou que a experiência ultrapassaria a gravação. “A ideia era fazer um disco, não uma banda”, recorda. O trio, porém, decidiu ensaiar uma vez, depois outra, mais uma, e mais tantas que veio o convencimento: as apresentações ao vivo fariam mesmo parte da experiência. E, dessa forma, como quem nada quer, o nome sonoro passou também a designar um novo grupo: Café Preto, que levou shows para Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro.
A troca entre os artistas deu tão certo que, em 2017, veio a público o compacto Água, Fogo, Terramar, parceria com a cantora Céu. Já o segundo álbum, Oferenda, data de 2018 e, desde então, a trinca pernambucana segue de palco em palco. Em abril de 2020, o encontro ocorreria no Itaú Cultural, não fosse a necessidade de suspensão social em razão da pandemia de coronavírus. A pausa na agenda, contudo, possibilitou que Cannibal e Pierre revisitassem o percurso do Café Preto e as influências que os marcaram, as quais servem de sugestões para quem deseja ter companhia neste tempo de gente separada.
Logo de manhã, Pierre põe Geraldo Azevedo para tocar: as faixas de De Outra Maneira (1986), por exemplo, despertam o dia, dia após dia. Jacob Miller com Who Say Jah no Dread (1994) e Rick Wakeman com The Six Wives of Henry VIII (1973) dão continuidade a uma playlist que atesta a diversidade que sempre acompanhou o produtor musical, acostumado a escutar de Pink Floyd a Chico Buarque, de Yes a Luiz Gonzaga. Cannibal compactua de semelhante ecletismo: Gregory Isaacs, Inocentes e Ramones não saem de seus ouvidos, que ainda guardam espaço para David Bowie e mestres brasileiros como Cartola e Gilberto Gil. “Nasci na comunidade do Alto José do Pinho e acho que, na periferia, é impossível você não se abrir para tudo. Aqui existe maracatu, a galera do brega, escola de samba e por aí vai”, explica o vocalista. Um misto de manifestações culturais que, no fundo, comprovam uma tese do trio: a música é um estado de espírito.
No terreno das disposições emocionais, Pierre observa que a arte da melodia “nos leva para um lugar tranquilo, ainda que seja em nossas cabeças”. Cannibal, por seu turno, acredita que as canções moram nas casas de todos. Tamanha ligação entre composições e ser humano não fomenta só a esfera sentimental: há ainda a atitude social, elemento que permeia a trajetória da banda que sabe entrelaçar coração e senso crítico.