por Duanne Ribeiro

Ainda criança, a pesquisadora e gestora cultural Ana Cunha se apaixonou pelo choro: da janela de sua varanda assistia às rodas musicais feitas por um vizinho, e o cavaquinho apanhado de surpresa, o saxofone em lágrimas sem ninguém saber por quê, essa receita do samba seguida à risca lhe transmitiram um encanto perene, desdobrado em diversos projetos ao longo da carreira. Atualmente, ela desenvolve a pesquisa Choro digital: redes, memória e música – projeto inserido no mestrado profissional em mídias criativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – sobre a qual ela fala ao Itaú Cultural.

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“Minha pesquisa”, explica Ana, “teve como ponto de partida a ideia de que o choro tem se mobilizado pela preservação de seu passado, o resgate de acervos e a codificação de seus conhecimentos em pesquisas e obras”. Tendo em vista isso, esta entrevista aborda como a música brasileira tem lidado com sua memória, os desafios de atuar com uma multiplicidade de fontes e as possibilidades do mundo on-line: “Precisamos potencializar a cocriação e um desenho compartilhado de práticas sociais para a memória digital”.

Choro digital: redes, memórias e música envolve um trabalho conjunto com grupos que possuem acervos e prevê dois desdobramentos: um registro de seu processo de criação e uma plataforma digital em que estarão disponíveis depoimentos, partituras, arquivos de áudio e vídeo etc. Antes do mestrado, Ana havia atuado com esse gênero musical em Choro do quintal ao municipal (2001), exposição e pesquisa de acervo idealizada e coordenada por ela (veja detalhes do projeto). Em 2019, a proposta foi retomada na internet com o nome Choro digital, segundo ela, uma “proposta estendida do projeto do mestrado”, que envolve hoje uma exposição virtual e o podcast Chorocast.

Ainda mais: em março de 2021, Ana produziu o I festival internacional do cavaquinho, de acordo com ela, “exemplo de como a pesquisa pode impactar a prática da produção cultural e do conhecimento”. Abaixo, a mestranda comenta também essa relação.

Na foto em preto e branco, vemos a pesquisadora acima dos ombros. Ela sorri, veste uma blusa preta que deixa o colo descoberto e tem o cabelo loiro preso atrás da cabeça.
A mestranda da UFRJ, Ana Cunha (imagem: Acervo pessoal)

Gostaria que comentasse o que, pessoalmente, a aproximou do choro em particular – o que a encanta nesse gênero musical? No mesmo sentido: parece que de um modo mais geral há o interesse pela cultura brasileira, pela cultura popular. O que a atrai nesses temas? 

Sempre ouvi muita música em casa, desde criança. Meu pai era um ouvinte atento ao cenário brasileiro. Sobre o choro, trago uma lembrança carregada de afeto referente ao ambiente onde cresci, o Grajaú, bairro no subúrbio carioca. Tenho uma amiga, Isabela, que morava em uma casa no bairro. Nessa casa passei boa parte da adolescência. Com três irmãs, primos e uma mãe acolhedora, a casa do Grajaú configurava-se como um ambiente agregador e festivo. Seu pai, Angelo Chaves, grande apreciador de música e futebol, promovia rodas de choro em casa, às quais assistíamos pela janela da varanda, fascinadas pelo conjunto e pela musicalidade. Minha paixão pelo choro nasce nesse ambiente e se desdobra em outras facetas, gerando este envolvimento com a cultura popular, a ponto de a cultura brasileira se estabelecer como central no meu trabalho e interesses de pesquisa. O que me atrai são as histórias de vida, a criatividade, o talento, a imaginação. A diversidade de narrativas, dos modos de inventar e de sermos brasileiros e brasileiras. 

Fale um pouco sobre sua pesquisa e sobre a fase em que se encontra.

É um trabalho de pesquisa-criação, e a ideia é pensar em colaboração com os grupos que já organizam suas histórias e acervos, tais como rodas e clubes de choro. Prevê como produto final a entrega de um “registro da experiência” (um documento aberto e colaborativo, uma memória do processo, para acesso da comunidade participante e de outras em processos similares) e uma interface interativa na web para exposição de depoimentos, arquivos pessoais e acervos (audiovisual, sonoro, textual, partituras, dados de pesquisas, entre outros), que chamo de “galerias de memórias”. Aqui pensar a divulgação como forma efetiva de preservação.

Busco refletir sobre os possíveis caminhos para a ampliação do acesso e da visualização de acervos e coleções com base nos trabalhos incríveis já desenvolvidos no campo da memória. Também tento incorporar na pesquisa as questões referentes ao distanciamento social por causa da pandemia de covid-19. Nesse sentido, produzi dois textos para disciplinas do mestrado, que disponibilizei no Medium.

Sobre a fase em que me encontro, concluí o primeiro ano e todas as disciplinas neste semestre, e em agosto pretendo iniciar o laboratório para o desenvolvimento do produto. Nesse laboratório/oficina a ideia é a construção de um campo semântico do choro, a definição da narrativa para o agenciamento dessas memórias e histórias, e para sua concepção, ou seja, suas variadas facetas, tais como categorias de dados (multimídia), formas de interação, moderação dos dados, visualidade, visualização, entre outros, um banco de dados aberto em evolução, onde os participantes possam adicionar seus conteúdos e incluir seus pontos de vista na narrativa. Dessa forma vamos construir uma cartografia do universo chorístico que será enriquecida a cada entrada/etapa, tornando esses conteúdos também disponíveis a todos.   

Em sua pesquisa, o campo da memória está em relação com a música, com a tecnologia. Como você entende isso conceitualmente – como vê a noção de memória, qual sua importância e como se dá essa relação com outras áreas?

Eu busco incorporar a dimensão da cultura digital. Tenho acompanhado atentamente a produção de autores como Giselle Beiguelman e Dalton Martins, principalmente em sua perspectiva crítica. Beiguelman, no ensaio introdutório ao livro Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais, nos apresenta que “reinventar a memória é preciso”. A cultura digital traz novas possibilidades para criação, organização, difusão e preservação no Brasil e no mundo. Esse cenário vem repleto de desafios, seja no campo da tecnologia, do financiamento, das políticas patrimoniais e culturais, seja no que se refere à participação social e à colaboração em rede, que em minha pesquisa ganham centralidade.

Em diálogo com o laboratório de que participo no mestrado, o Bug404, vejo o campo da memória como construção narrativa, com seus espaços de conflitos e disputas, mas também com suas possibilidades de participação, interação, compartilhamento e cocriação. Não nos importa mais apenas o acesso aos acervos, mas também a participação como sujeitos fundamentais na construção dessas memórias. Orhan Pamuk, autor do livro que virou museu, O museu da inocência, publicou em 2006 um manifesto intitulado “Modesto manifesto pelos museus”, no qual defende que teria chegado o momento da participação social na construção do conhecimento e que o futuro dos museus estaria em nossas casas. Nesse sentido, acredito que as comunidades de aprendizagem e a transdisciplinaridade inerente ao campo da memória são fundamentais para a construção dessa “cultura da participação”, da qual temos, por exemplo, a Wikipédia como expoente de prática e participação social.

 

Você fala que houve no choro uma mobilização pela preservação de sua história.
O quanto isso é particular em relação a outros gêneros musicais e o que você acha que potencializou essa cultura no caso do choro?
 

Não só no choro. A partir do século XXI, vimos no Brasil a ampliação das políticas de preservação de acervos empreendidas por governos, instituições e algumas empresas. Essa não é minha área específica de pesquisa, mas acho que posso contribuir trazendo alguns autores.

Como nos apresenta André Guerra Cotta, em Arquivologia e patrimônio musical, pensar as questões relativas à preservação e ao acesso ao patrimônio musical implica necessariamente repensar a noção tradicional de patrimônio cultural. Um dos motivos dessa ampliação pode ser atribuído ao alargamento da noção tradicional, ou seja, se antes a orientação era dada por uma concepção material que ficou conhecida por “pedra e cal”, hoje há o conceito mais inclusivo de patrimônio imaterial, campo de práticas culturais no qual vemos um notável crescimento de iniciativas de tratamento de acervos no Brasil. Já Cacá Machado, em seu artigo “Entre o passado e o futuro das coleções e acervos de música no Brasil”, contextualiza em perspectiva histórica os movimentos de preservação dos registros musicais no Brasil. Contudo, continua em aberto aprofundar como o ambiente web, e agora a computação em nuvem, poderá impactar a preservação e a construção de memórias, não só na música mas também em outros campos do conhecimento. Para além dos bancos de dados e da organização dos documentos com base em arquivologia em estrutura centralizada, a web gera a possibilidade concreta para um trabalho em rede, integrado, cooperativo e descentralizado.

Sobre a cultura do choro, Henrique Cazes, músico, pesquisador e figura fundamental na minha pesquisa, lançou em 1998 o livro Choro do quintal ao Municipal, publicação definitiva para entender a trajetória do choro e sua vivacidade até os dias atuais. Por ocasião das comemorações dos 150 anos do choro, este mês foi lançada a quinta edição do livro. Em posfácio para a edição, Cazes aponta alguns aspectos que potencializaram a cultura do choro e alteraram sua circulação. Posso destacar dois deles. O primeiro, a inserção acadêmica. O choro ganhou espaço, abrangência e profundidade nas universidades, tanto nos cursos de graduação quanto nos de pós-graduação. O segundo ponto refere-se ao campo de circulação do choro e sua inserção internacional, que vai desde a criação de clubes de choro em diversas cidades do mundo até a produção fonográfica realizada entre músicos brasileiros e estrangeiros. Não poderia deixar de destacar a iniciativa importantíssima de registro do choro como Patrimônio Cultural do Brasil, atualmente em curso, que, tenho certeza, trará contribuições significativas para a ampliação do diálogo. Acredito que essa pergunta, por si só, mereceria um seminário sobre esses processos de mobilização e preservação.  

Ainda na direção da última pergunta: O que outros gêneros musicais ou mesmo outros campos artísticos podem aprender com essa mobilização do choro? Isto é, que saber podem extrair daí para preservar sua memória?

Quanto a essa questão eu cada vez mais acredito na movimentação em rede, no compartilhamento de conteúdos e conhecimentos. Temos inúmeras iniciativas culturais incríveis no campo da música, em toda a sua diversidade de gêneros musicais e expressões. E também em outros campos artísticos. Precisamos, sobretudo, potencializar as iniciativas por meio de políticas públicas de cultura que fomentem um processo de cocriação entre os participantes e promovam um desenho compartilhado de práticas sociais para a memória digital. Minha pesquisa teve como ponto de partida a ideia de que o choro tem se mobilizado pela preservação de seu passado, pelo resgate de acervos e pela codificação de seus conhecimentos em pesquisas e obras. Agora que essa etapa se encontra mais consolidada, um próximo passo seria criar conexões entre esses atores e conhecimentos. Os campos e experiências a ser conectados vão desde acervos institucionais e pessoais, material iconográfico e audiovisual, até agendas, eventos e as áreas acadêmicas em que, dentro e fora do Brasil, existem núcleos desenvolvendo trabalhos renovadores.

Desde a exposição de 2001 até o momento parece que sua atuação sempre se efetiva sobre essa “dispersão” de fontes. Quais as dificuldades de trabalhar com
uma tal multiplicidade de acervos? Como superá-las?

Acho que essa é a pergunta-chave da minha pesquisa. Quando penso como foi feita a pesquisa em 2001, parece outro mundo, por mais divertido que tenha sido. Acho difícil pensar hoje fora do sistema de buscas e algoritmos da web, por mais complexa e preocupante que seja esta questão. Também não tínhamos a menor dimensão, sobretudo, sobre o acervo iconográfico do choro, o que se configurou como grande surpresa e alegria na época. Descobrimos um manancial de documentos, e contamos com a colaboração da comunidade chorística para diversas identificações. Em laboratório realizado neste semestre no mestrado, identificamos três desafios principais: o primeiro, o engajamento dos participantes em um processo de laboratório colaborativo e de cocriação. O segundo, nesse mesmo ambiente de laboratório, o “embarcar” no desenvolvimento do projeto tecnologias e soluções já em desenvolvimento. Por fim, mas não menos importante, garantir, por meio da curadoria digital, o acesso, o uso e o reúso dos dados.

A respeito do Festival internacional do cavaquinho, você comenta que é um “exemplo de como a pesquisa pode impactar a prática da produção cultural e do conhecimento”. Gostaria que comentasse mais sobre esses impactos da pesquisa. É comum pensar a pesquisa separada da sociedade. O que a pesquisa pode fazer? Quais potenciais você vê em sua própria pesquisa? 

Como faço um mestrado profissional, esse ponto se impõe aliado à ideia da pesquisa-criação, em que pesquisa e desenvolvimento aparecem imbricados em diferentes possíveis relações para a criação. Com a cultura digital e as tecnologias da informação e da comunicação, o sistema de produção cultural começa a ganhar novos contornos e modos de realização, levando-nos a questionar a linearidade da cadeia tradicional de produção, distribuição, troca e uso. Dossiês e pesquisas apontam para uma possível aceleração desse panorama a partir da pandemia de covid-19. Proponho fazer um exercício e pensar, por exemplo, sobre o impacto das medidas de isolamento e distanciamento social no processo de pesquisa para o registro do choro como Patrimônio Cultural Brasileiro. Um processo que ocorria em boa parte presencial foi adaptado para 100% digital. Do ponto de vista da produção, as reuniões e entrevistas seriam gravadas, transcritas, editadas, analisadas e depois disponibilizadas em dossiê para o público. Com o novo formato não só foi ampliada a abrangência geográfica dos entrevistados e entrevistadores como foi disponibilizado o conteúdo de pesquisa em “tempo real” permitindo a participação e a interação das comunidades de diversas partes do país e do mundo. Outras tecnologias e aplicações em inteligência artificial poderiam ter apoiado o processo, tais como transcrições automatizadas, cooperações web semânticas, visualização de dados, entre outras, que nem sequer ainda conseguimos imaginar. Temos, assim, uma forte dimensão tecnopolítica incorporada ao processo.

Acredito que as pesquisas, de modo geral, possam contribuir para o compartilhamento de reflexões sobre temas sensíveis entre os participantes de uma comunidade e promover um processo coletivo de construção de narrativas e leituras de mundo. Sobre minha pesquisa, espero que, em seu diálogo com o ecossistema do choro e das humanidades digitais, contribua para a participação social ao direito à memória digital e à cultura assim como a promoção de políticas públicas que atendam os desejos e as práticas sociais.

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