por Daniel Galera
Narrar uma história inteira apenas com descrições. Esse exercício de escrita que me foi proposto há mais de 20 anos, quando cursei a oficina de Luiz Antonio de Assis Brasil em Porto Alegre, por algum motivo foi um dos que mais permaneceram na minha memória.
É muito difícil narrar algo sem recorrer a diálogos e ações. Lembro que minha solução para atender à proposta foi descrever a cena de um acidente de carro. A partir do tipo de dano sofrido pelo automóvel, dos objetos e de suas posições na cena, tentei transmitir ao leitor informações importantes sobre quem estava viajando no veículo, sugerindo os contornos daqueles personagens, suas emoções, seus atos logo antes do acidente.
Em seu manual de criação literária Escrever ficção, publicado em 2019, Assis Brasil chama de espaço não apenas o cenário da história, mas todo objeto e sensação descritos com o objetivo de fazer o leitor habitar o lugar em que ela transcorre. Citando Gaston Bachelard (“Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo”, em O novo espírito científico), o professor afirma que não há espaço inocente numa narrativa. As descrições espaciais não são adornos nem uma espécie de recheio para diálogos, ações e reflexões. Elas dizem muita coisa sobre os personagens e seus estados interiores.
O conceito de Unpacking, um pequeno jogo indie da desenvolvedora australiana Witch Beam (autora também de um dos meus jogos preferidos, o twin-stick shooter Assault Android Cactus), pode começar a ser descrito como uma espécie de versão para os videogames daquele exercício de escrita que fiz há mais de 20 anos. Não há diálogos nem personagens visíveis no jogo. Quase não há texto de nenhum tipo. Numa série de ambientes residenciais, o jogador tem a tarefa de retirar objetos de caixas de mudança e organizá-los no espaço disponível.
No nível mais simples, trata-se de um jogo de puzzle, um quebra-cabeças. O espaço disponível em armários, prateleiras, camas, mesas, gavetas, ganchos, suportes e superfícies variadas é limitado, e para conseguir encaixar tudo o jogador pode ter que testar a posição dos objetos como se fossem peças de Lego ou de Tetris. Além disso, não se pode guardar um livro na pia nem uma torradeira no travesseiro: o jogo exige coerência e as coisas têm seu devido lugar.
Se fosse apenas um jogo de puzzle, Unpacking já seria interessante o suficiente. A dificuldade é baixa e há uma tranquilidade gostosa em retirar os objetos da caixa (nunca se sabe ao certo o que vai aparecer a cada clique), girá-los, decidir onde ficam, organizá-los até que preencham os adoráveis cenários isométricos desenhados em lindo estilo pixel art. Até os efeitos sonoros dos objetos tocando diferentes superfícies causam prazer (são 14 mil sons diferentes!). Há bastante liberdade para decidir como organizar roupas em cabides, empilhar caixas de games ao lado dos consoles e imprimir toques pessoais à decoração.
Porém, basta jogar os dois primeiros níveis para perceber que os criadores de Unpacking tinham objetivos muito mais ambiciosos. O primeiro ambiente é um quarto de criança. Quando terminamos de guardar os brinquedos, o material escolar e outros objetos, uma fotografia do quarto arrumado vai para uma página de um álbum marcada como “Maio de 1997” e com a legenda: “Finalmente, um quarto só pra mim!”. O segundo ambiente é um conjunto apertado de quarto, banheiro e cozinha, e, ao completar-se a arrumação, a foto que vai para o álbum diz “Janeiro de 2004”, com a legenda: “As aulas começam segunda! Faculdade, lá vou eu!”.
Percebemos, então, que há uma história sendo contada. E ela vai sendo contada unicamente por meio dos espaços e dos objetos. Pelas roupas, pelos livros e pelo equipamento de computador que desempacotamos, deduzimos que a protagonista é uma garota que gosta de desenhar e provavelmente quer ser ilustradora. Unpacking vai acrescentando suas camadas narrativas de maneiras muito inteligentes. É preciso prestar atenção nos objetos que permanecem e nos que ficam para trás a cada mudança: um ursinho de pelúcia, um mousepad, livros, ímãs de geladeira, porta-retratos, até mesmo utensílios de cozinha.
Do mesmo modo, a acomodação possível dos itens nos ambientes muitas vezes transmite mensagens. Em certo estágio, você perceberá que não resta espaço para o seu diploma emoldurado em lugar algum, exceto debaixo da cama. As implicações disso, dentro de todo o contexto da cena, são claras e se projetam no complexo mundo de relações pessoais que somos levados a imaginar.
No estágio datado em março de 2007, a mudança é para um dormitório maior, compartilhado com uma colega. Pela primeira vez, desempacotamos nossas coisas num apartamento já abarrotado das coisas de outra pessoa. Não é possível mover os pertences alheios, o que de cara transmite a sensação de estarmos respeitando a presença de uma estranha, invadindo em alguma medida o espaço onde ela já vive.
No nível seguinte, chegamos a 2010 e nos mudamos para um apartamento muito diferente: a decoração é mais escura, os itens de cozinha são sofisticados, tudo é meio cinzento e minimalista, muito diferente dos ambientes coloridos e luminosos que organizamos até o momento. As gavetas do armário, as estantes e as prateleiras da cozinha estão cheias, e sobra pouco espaço para encaixarmos nossos pertences. A sensação de deslocamento é imediata. Pela primeira vez, algo parece estar errado. A pessoa que mora ali habita um universo estético muito diverso do nosso e não nos abriu espaço, como se devêssemos nos acomodar à vida dela, sem a devida reciprocidade.
Não quero entrar em muitos detalhes sobre os níveis seguintes, porque temo estragar a experiência de quem se animar a conhecer esse pequeno grande jogo (você pode terminá-lo em cerca de quatro horas ou levar mais tempo caso se dedique sem pressa às arrumações e explore todas as possibilidades, o que pode resultar em prêmios). A maneira como ele sabe reproduzir as idas e vindas de uma juventude que se transforma aos poucos na vida adulta é muito sensível e eloquente. Você logo vai notar que os níveis não seguem a ortodoxa progressão de complexidade e dificuldade que esperamos da maioria dos jogos. Algumas mudanças na vida são para menos, para trás, na direção da simplicidade ou de um desapego, que podem ser forçados ou voluntários, mas de algum modo sempre, em retrospecto, necessários. Talvez em algum momento da vida haja espaço de sobra para os pertences da nossa protagonista. Talvez ela possa se mudar junto com alguém para um lar onde terá a liberdade de reacomodar também os pertences da outra pessoa, gesto que fala de amor sem precisar de imagens nem palavras.
Unpacking é um brilhante caso de narrativa procedimental trabalhando a favor de uma história. Um jogo sereno e breve, cheio de prazer sensorial, com uma camada externa graciosa e quase zen, mas com uma profundidade humana que transborda tanto dos grandes movimentos quanto dos detalhes minúsculos.
A passagem do tempo é, evidentemente, o grande eixo narrativo aqui. As coisas que permanecem ou somem a cada salto temporal são os indícios da história sendo contada, e a nostalgia é explorada em toda a sua potência. Para mim, isso transpareceu, acima de tudo, na sucessão de computadores e consoles de videogame que passam pela vida da protagonista. Objetos correspondentes aos que saíam das caixas fizeram parte da minha própria vida, e a visão de um gabinete do que pode ser um PC Pentium com monitor SVGA ou de um console de Game cube com seus joysticks e caixinhas de jogos desenraizou lembranças e sentimentos guardados no meu passado.
Unpacking está muito consciente de que seu público pertence a alguma geração que já não pode dissociar a sua memória episódica – aquela que nos faz reviver de certa maneira o que é lembrado – do seu histórico de consumo. Os bens de consumo, o jogo parece dizer, são o espaço subjetivo de quem estará jogando. Esta é uma consideração posterior que não deve impactar muito o efeito emocional da história e a forma como ela é contada, mas, ao pensar com mais força no jogo, ela se tornou, ao menos para mim, inevitável: o que há lá fora, para além dos objetos e móveis? Há ambientes em que nos são oferecidas janelas ou portas de vidro para entrever o que circunda a existência doméstica, mas eles não trazem nada que possa desviar nossa atenção das coisas que saem das caixas, coisas e mais coisas, todas, exceto os vasos de plantas, artificiais e manufaturadas, o mapeamento cumulativo das nossas sensações e vivências em uma sociedade de consumo.
A conclusão dessa rota de pensamento pode ser um pouco melancólica, dependendo daquilo que você vai ver ao desligar a televisão e olhar em volta, para o seu espaço privado. Na vida, como nas narrativas, somos responsáveis pelo espaço que criamos, pelo juízo daquilo de que precisamos e não precisamos, pela medida do nosso apego ou desapego.