Tramas da luz: a terra, a memória, o que fica
11/08/2021 - 10:00
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Kamikia Kisedje (@kamikiakisedje) é fotógrafo e cineasta ambiental, nascido na TI Wawi/MT. Produz um repertório plural nas realizações audiovisuais, focado nas lutas e nas estratégias político-imagéticas dos povos indígenas. É um dos primeiros a utilizar drones e ministrar oficinas para a captura aérea de imagens, como uma ferramenta para vigília dos territórios de seu povo e do Xingu.
por Rogério Felix e Karina das Oliveiras
Parece-nos instigante refletir sobre as maneiras pelas quais são constituídas as interpretações em torno dos sentidos de “herança”. Tomando-a como sinônimo de “patrimônio”, é inextricável a ideia de transmissão, algo, por vezes alguém, passado de pessoa a pessoa, do cis-hétero-patriarcado adiante. Em linhas teóricas engajadas nos estudos do patrimônio cultural, existem três categorias basilares que o caracterizam: o saber fazer (técnicas y estratégias), os produtos das manipulações técnicas (artefatos) e a natureza (flora, fauna, minerais, entre outras coisas chamadas de recursos naturais).
Quanto a esta última categoria especialmente, várias questões se despontam interessantes. Afinal, quem teriam sido as ancestrais que legaram a natureza para domínio de seres humanos? Seria esse mote da dominação mais propagado, o mais sustentável para ter em vista a ecologia das relações terrestres? O que pensar sobre as múltiplas escalas de tempo que precedem a humanidade sapiens, vinculadas à idade das árvores, das águas, das rochas, do solo?
Certamente, a depender da cosmopercepção que, em maior ou menor grau, oriente o modo de encarar as coisas, as respostas às questões podem ser muito diferentes. O professor Tiganá Santana, ao traduzir-retomar pílulas dos ensinamentos do kongolês Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau, aqui bruscamente reavidas, mostra que, no sistema de conhecimento bakongo, bântu (pessoas) estruturam-se como objeto-alma-mente, “sistema-chave de sistemas”, em distinção às incontáveis existências objeto-sem alma-mente; consonante com as prescrições enunciadas nos sóis que regem a gramática do mundo kongo. Ele também mostra que, no âmbito dessas normas morais tradicionais, pesa(va) como crime comprar/vender terras e acumular individualmente riquezas.
Daí, um bruto esboço de respostas poderia se delinear pela compreensão de que sujeitas e objetos, resguardadas suas dissemelhanças, não devem estabelecer relações de estrita exploração de umas pelas outras, mas de coetaneidade equilibrada no curso dos movimentos de ir, sendo, ser de novo o que já foi/será. Que dizer então das modificações nas paisagens, naturais e culturais, ocorridas no curso do impetramento das geopolíticas ocidentais, indissociáveis de suas oceanopolíticas, para comandar as rotas de trocas e comércio do globo no último milênio?
A violência que pariu a história das imagens brasileiras, que representam as gentes indígenas – negras da terra e da África – naturalizadas como paisagem, seja na pintura histórica, seja nas grafações com luz, deixa pistas incontornáveis da trilha de mortes que arranja a tônica das mudanças. Quando se dispõe de satélites de observação, radares, drones e demais equipamentos que possibilitam registrar-transmitir, pedaço a pedaço, o derramamento de óleo pelas ribeiras da costa no Nordeste-Sudeste, avalanches de detritos da mineração multinacional, os incêndios provocados para destruir o Pantanal, o desmatamento amazônico, as consequências do desleixo para implementar modais de transporte, é imediatamente contestável o que tem sido feito desses locais, suas habitantes, depositados em configuração distinta da perversa realidade social, por intermédio de agentes/testemunhas do prenúncio das catástrofes, nos bancos de dados mundo afora. No sentido de reivindicar a preservação do que se mantém transmitido pela fibra óptica instalada na sequência das rotas – no fundo – dos oceanos.
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O caráter técnico-científico do advento da fotografia no século XIX resulta de uma longa trajetória de estudos ópticos, químicos e de experimentos ao redor do mundo para fixar e reproduzir de maneira mais rápida as imagens. A mecânica do instrumento câmera desdobrada das antigas caixas mágicas e dos jogos de espelhos traz a luz como seu movimento e elemento criador. Essa luz pode ser uma guiança ou um aprisionamento a depender de quem a maneja.
É importante ressaltar, todavia, que a revelação de uma imagem é também um ato de preservação de memórias. Assim como o arquivo vivo, chamado natureza, tem em suas paisagens memórias preservadas e revela em suas camadas tempos e histórias, também os pixels são grãos das memórias nas imagens digitais.
A Biblioteca Nacional possui digitalizadas em seu acervo algumas fotografias de implosão das pedras para abertura das estradas, perfuração do solo, desmatamento de mananciais, instalação de portos marítimos e seus fluxos que remontam diferentes épocas. São fotografias onde intervenção e modificação da natureza estão expostas como o “mal necessário”, a inevitável deturpação da civilidade; e esquematizam poder, progresso e modernidade em seus ângulos e símbolos.
Se nos valermos, portanto, da institucionalização das relações e das memórias, justificada pelo uso do povo, estaríamos nós com imagens arquivadas, dados transmitidos que testemunham e confirmam um passado-presente que traz a destruição e o extermínio dos modos de vida como políticas de ocupação da terra e dos mares. O princípio dos desequilíbrios energéticos e vitais dos ecossistemas foi, e ainda é, a matriz cosmológica e cosmogônica imposta pela violência da invasão colonial aos territórios e às vidas.
Acessando fotografias digitalizadas, disponíveis em arquivos, acervos e coleções de instituições de preservação, por meio da rede internet, podemos nos defrontar com repertórios plurais de paisagens da natureza em diferentes recortes de tempos e circunstâncias. Se as compararmos, veremos suas gradativas representações sucumbindo ao concreto, à pavimentação e à poluição. O que nos leva a um assustador ponto da reflexão: transmitiremos às futuras gerações uma herança-dados em que a natureza é um pixel-grão-memória numa fotografia arquivada, enquanto lidaremos por completo com extinções, genocídios e destruições que inviabilizam, inclusive, nossa continuidade como espécie?
A pensar na idade dos oceanos, as areias miúdas no solo marinho nos contariam algumas profundidades dos tempos. De fato, a singeleza dos mergulhos dos peixes bioluminescentes no fundo do mar remexe alguns grãos que viajando dentro d'água chegam à orla em algum momento. Porém, não tão ágeis quanto as máquinas dos navios de dragagem que sugam, por segundo, milhões de litros de areia com intuitos, por exemplo, de aumentar uma faixa de praia ou modificar a profundidade do mar.
A planície de areia repleta de dunas moventes, também conhecida como Fortaleza, terra do Syará, reflete ardentemente os impactos das violentas intervenções em suas habitantes ancestrais, as dunas e as águas. Dando a linha, as artistas visuais Dhiovana Barroso e Marissa Noana, geradoras da Coletiva Terroristas del Amor, articulam imagens e imaginários por meio de múltiplos suportes e linguagens. Fortalezenses nascidas e criadas, a relação íntima com a paisagem da terra de onde brotaram se faz presente em seus trabalhos com fotografia, quando areia e mar são fonte e composição.
Em Ilhas adormecidas e Vulcões inativos (2018), elas apresentam versatilidade nos trânsitos e nas relações entre técnicas e suportes. De uma fotografia analógica, que torna seu negativo uma matriz para a exposição em cianotipia e, ao ser digitalizada, se transforma em micropontos de pixels, códigos, bits, há um desdobramento desse trabalho, em curto vídeo, que adiciona a camada animação/manipulação na imagem digital.
Entre elementos químicos, jogos de sombra e luz, a fotografia realizada na porosa estrutura das fibras de algodão cru traz ainda uma variação tonal que nos aproxima da reflectância da incidência solar na superfície do mar, no esplendor do céu e no brilho do areal. Guardando uma memória-grão do chão da terra-mar, Terroristas del Amor nos lembra que adormecer é uma dimensão do processo imersivo de descansar os olhos. E que, na morada dos silêncios, o sol ilumina o som do mover do magma da terra, que tal hora ativa o peito em flor feito vulcão, feito viver. Estrondo, estalo, pipoca.
A natureza persiste em continuar suas heranças, antes de tudo, para si mesma, regenerando os ciclos próprios de cada sistema vivo que compõe a complexa trama do meio ambiente. É preciso e urgente deixá-la viver. São necessárias outras fotografias, outras posturas, outras humanas-códigos. Hoje. Paisagens da natureza são como nossas vidas, estão em perigo.
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A coluna Revelação convida curadores, pesquisadores e outras pessoas interessadas nos debates que a produção de imagens pode suscitar para escrever sobre fotografia. Ao final de cada texto, uma recomendação de perfil do Instagram que tenha chamado a atenção do autor.
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Karina das Oliveiras é uma folha da árvore nascida e criada em Fortaleza/CE. Atua como historiadora da arte, pesquisadora, realizadora audiovisual e poeta. É bacharela em história da arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com ênfase em história, teoria e crítica. Estuda cinemas indígenas como criação de estratégias de descolonização e de autorrepresentação no Brasil. Como pesquisadora se concentra atualmente em linhas investigativas acerca da memória, identidade, visualidades, artes sonoras, fibra óptica, performances dissidentes, narrativas indígenas, afrodiaspóricas, arquivos digitais e representações da natureza em múltiplos suportes.