por Laura Erber

 

“Fazer uma imagem é pôr o homem no mundo como espectador. Ser um humano é produzir a marca da sua ausência na parede do mundo.”
(Marie-José Mondzain)

No fundo de uma gruta espanhola, foram analisadas pinturas que vêm sendo anunciadas como as mais antigas do mundo. Um novo método de datação, que analisa as “pipocas”, ou nós de calcita, aragonita ou gesso que se formam nas superfícies das cavernas, determinou que os traços e símbolos inscritos nas paredes da gruta de La Pasiega, descoberta há muito tempo, têm pelo menos 65 mil anos.

Essa notícia, que circulou em 2018, talvez tenha causado furor verdadeiro só no campo científico, mas foi compartilhada com entusiasmo por aficionados da pré-história e ajudou a entreter os espectadores contemporâneos, sempre sobressaltados pelas terríveis notícias sobre o nosso presente. A descoberta que a notícia anunciava, no entanto, traz novos desafios para a maneira como encaramos nossas primeiras imagens e para as representações que fazemos de nossos ancestrais mais longínquos.

A Cueva de La Pasiega, situada no norte da Espanha, pertence à mesma rede de grutas que abarca El Castillo, Las Monedas e Las Chimeneas, e foi incluída na mesma lista de sítios do patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em que figura a Caverna de Altamira. Assim como as pinturas da gruta El Castillo e as pinturas altamente sofisticadas da gruta de Altamira, a arte de La Pasiega consiste em imagens tanto figurativas quanto abstratas, mas em maior quantidade.

O surgimento da imagem produzida por mãos humanas recua cada vez mais na linha do tempo, mas a descoberta em território espanhol é impactante, pois significa que essas imagens foram realizadas por neandertais: naquele momento, os Homo sapiens ainda não haviam chegado ao território europeu. O fato ajuda a desfazer a ideia consagrada de uma hierarquia rígida entre Homo sapiens e neandertais: hoje acredita-se que ambos tinham uma capacidade cognitiva, criativa e intelectual equivalente ou muito mais semelhante do que se pensava – uns e outros desenvolveram um senso estético, criando objetos cada vez mais simétricos e ornamentados para além de sua mera função utilitária.

Fotografia vertical colorida de parede de caverna com pintura em vermelho
No fundo de uma gruta espanhola, foram analisadas pinturas que vêm sendo anunciadas como as mais antigas do mundo. O fato surpreendente é que a data indica que foram produzidas pelos neandertais (imagem: divulgação)

O desaparecimento dos neandertais ainda não foi bem esclarecido. Por muito tempo, prevaleceu a versão segundo a qual eles teriam sido eliminados pelos Homo sapiens, mas, desde 2010, quando ficou comprovada a presença de DNA neandertal na população da Europa e da Ásia, sabe-se que a relação foi mais fecunda. São trabalhadas outras hipóteses, inclusive a de uma mestiçagem pré-histórica, em que os neandertais, que viviam em grupos menores, teriam sido pouco a pouco absorvidos pelos Sapiens.

Estudiosos da pré-história concordam que, desde muito cedo, o Homo sapiens sapiens teria se dedicado a atividades associadas à dimensão simbólica e imaginária. A descoberta de pinturas neandertais na gruta espanhola empurra para um passado ainda mais remoto o nascimento da imagem e das formas simbólicas. As primeiras imagens continuam a murmurar o enigma sobre nossos começos, sobre o próprio desejo por imagens e o nascimento do espectador. A teórica da imagem Marie-José Mondzain, em seu belo livro Homo spectator, mostra que as primeiras imagens são também um testemunho do nascimento do espectador, estabelecendo o circuito complexo em que alguém cria algo a ser mostrado a outro, presente ou futuro, criando assim um dispositivo que nos toca e comove até hoje.

Se no passado histórico a imagem no Ocidente surge intimamente vinculada à questão do indizível, abrindo espaço para toda uma teoria do invisível e permitindo uma nova articulação transcendental entre o mundo da matéria e o inefável, entre o finito e o infinito, entre presença e ausência, não temos dados suficientes para entender o tipo de relação com a visualidade da qual teriam emergido as pinturas pré-históricas nem qual seria sua finalidade específica. Mesmo que se procure enquadrar as primeiras imagens numa compreensão genérica da espiritualidade ou do xamanismo, há algo que nos escapa. A própria ideia de uma religiosidade pré-histórica foi criada no século XIX e incrementada pelo comparativismo etnográfico em que sociedades estudadas por antropólogos serviam de modelo para a compreensão do modo de vida e das crenças de nossos ancestrais mais longínquos. É um caminho sedutor, ao qual aderiram escritores e artistas modernos, mas problemático.

É verdade que ficamos um pouco gagos diante das imagens produzidas na pré-história – o vocabulário existente ou é excessivo ou é insuficiente, de modo que essas imagens nunca param de desafiar nossa capacidade de descrever o que vemos e o que não conseguimos saber sobre o que se apresenta ao nosso olhar.

Uma imagem cujo sentido nos escapa é uma espécie de afronta à cultura moderna que nos moldou, já que um dos seus pressupostos é justamente o de que toda imagem significa e, portanto, pode ser decifrada.

Fotografia colorida de pintura vermelha
Criar imagens ou se expressar através de símbolos pressupõe sofisticadas habilidades mentais e físicas que identificamos com aquilo que nos torna humanos, inclusive o desenvolvimento da linguagem articulada (imagem: D.D. Standish, A.W.G. Pike and D.L. Hoffmann)

A arqueologia não foi impermeável a essa ideia, embora muitos arqueólogos tenham enorme cuidado para não superinterpretar as imagens que analisam. Temos de fato enorme dificuldade em falar sobre imagens que não sabemos exatamente o que nos dizem. Como bem mostra a arqueóloga Sophie A. de Beaune, pesquisadores mais sóbrios e escrupulosos recorreram à noção de religião por falta de uma boa alternativa. É o caso de André Leroi-Gourhan, uma das maiores referências no estudo das imagens rupestres, que em seus estudos utilizou as palavras religião e magia em sentido muito específico e, ciente de suas limitações, empregou-as para se referir aos fenômenos ou atividades que ultrapassavam as preocupações utilitárias dos indivíduos e grupos pré-históricos.

Só mais tarde essas imagens passaram a integrar uma concepção mais artística ou estética da produção cultural humana, e, apesar de utilizarmos a palavra artista para designar os indivíduos ou grupos que produziram essas imagens, sabemos que nossa noção de arte se define no Renascimento e não é propriamente capaz de dar conta do fenômeno ao qual nos referimos, ainda que seja importante conferir tanto aos Homo sapiens quanto aos neandertais o reconhecimento de sua busca estética, na verdade uma busca que começa antes deles, já na época do Homo erectus, que não se contentava em apenas quebrar pedras, passando a dar-lhe uma forma mais regular e oblonga.

A representação dos neandertais

Criar imagens ou se expressar através de símbolos pressupõe sofisticadas habilidades mentais e físicas que identificamos com aquilo que nos torna humanos, inclusive o desenvolvimento da linguagem articulada. Os pesquisadores que defendem uma revisão mais consequente da imagem difundida dos neandertais sabem que precisam, antes de mais nada, combater a noção de superioridade humana no campo da arqueologia. Pelo que se sabe hoje, os neandertais enterravam seus mortos, faziam pinturas nas paredes das grutas e também pintura corporal: é provável que usassem adornos e que tenham desenvolvido sistemas de cuidado com os doentes e os membros mais idosos do grupo.

Por mais de cem anos, os neandertais foram representados como nossos antagonistas, uma espécie inferior e mais atrasada. Inicialmente apresentados como chimpanzés dotados de certas capacidades humanas, depois como seres um pouco mais humanizados e extremamente robustos que apenas empunhavam tacapes e emitiam grunhidos, um pouco estúpidos ou em todo caso mais estúpidos do que “nós”, o mais provável é que os neandertais fossem tão avançados mentalmente quanto os Homo sapiens. Alguns especialistas na evolução da espécie têm inclusive trabalhado com a ideia de que Sapiens e neandertais integrem a mesma espécie. Paola Villa, pesquisadora da Universidade do Colorado, em Boulder (Estados Unidos), sustenta que precisamos dissipar o complexo de superioridade humana moderna que ainda impregna as compreensões e figurações de nossa pré-história.

Voltando ao fundo da gruta

As imagens de La Pasiega são também o testemunho de outro fenômeno fascinante, em parte já atestado em sítios como a gruta de Chauvet, na França: a colaboração entre “artistas” através dos tempos. A datação das imagens rupestres permitiu observar que muitas delas são fruto da sobreposição ou composição entre imagens produzidas com intervalos de centenas ou mesmo milhares de anos. No caso de La Pasiega, algumas imagens trazem, ainda, um dado especial: de que são fruto de intervenções de neandertais e de Homo sapiens. Dessa “parceria” surge uma combinação inquietante de abstração e figuração. Pontilhados, traços verticais e horizontais e, dentro deles, imagens de bovinos e, ao lado, uma forma complexa. São imagens que atestam nossa vitalidade imaginária e que nos interpelarão ainda por muitos séculos. 

A coluna Revelação convida curadores, pesquisadores e outras pessoas interessadas nos debates que a produção de imagens pode suscitar para escrever sobre fotografia.

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