por Daniel Galera

 

No livro 24/7 – capitalismo tardio e os fins do sono (2014), o teórico da arte Jonathan Crary descreve como o avanço das tecnologias digitais, em aliança com o sistema capitalista, busca colonizar todo o tempo livre dos sujeitos para transformá-lo em tempo produtivo. O regime alternado de dia e noite e o próprio sono seriam os últimos teatros de batalha dessa invasão: smartphones e a onipresente conexão à internet tornam mais fáceis “a perpetuação do mesmo exercício banal de consumo ininterrupto, isolamento social e impotência política”, escreve. “Gastam-se bilhões de dólares em pesquisas dedicadas a reduzir o tempo de tomadas de decisão, a eliminar o tempo inútil de reflexão e contemplação. Essa é a forma do progresso contemporâneo – a prisão e o controle implacáveis do tempo e da experiência.”

Tais observações devem soar convincentes a todos que já experimentaram seu espaço mental, seu trabalho e suas relações sociais ser afetadas pelo senso de urgência e pelo excesso de informação da nossa sociedade conectada. Crary não trata em especial da mídia dos videogames em seu livro, mas não raro me pego refletindo sobre como os jogos contemporâneos, em sua maioria, refletem ou mesmo agravam as tendências do 24/7. O discurso da “liberdade do jogador” dentro de sistemas de progressão saturados de atividades em jogos de mundo aberto como Horizon: forbidden west ou as sucessivas versões de Far cry tendem a gerar um estado de ansiedade permanente, no qual nos sentimos pressionados a completar o máximo de missões e atividades enquanto somos lembrados de tudo que ainda estamos perdendo, tudo que resta a fazer. O imperativo é estar mobilizado, desperto, alucinado pelo maior tempo possível.

O caminho dessa progressão, nos melhores jogos, é prazeroso: a recompensa é administrada em doses calculadas, sempre apontando para um novo leque de upgrades e atividades; mas é também um caminho mecânico e sempre um pouco abusivo ao jogador, por mais que bons personagens e histórias complementem a experiência com envolvimento narrativo. Muitos jogos modernos – não só os feitos por grandes estúdios – parecem querer preencher o máximo de espaço possível na vida do jogador. O chamado gameplay loop – processo viciante de avançar em sucessivos incrementos de desafios –massageia os pontos de prazer do cérebro ao mesmo tempo que nos atormenta por ainda estarmos longe de ter visto e feito tudo – e quanta coisa há para fazer! São semanas, às vezes meses, para alcançar uma quantidade satisfatória de objetivos. Os jogadores em geral apreciam esses estímulos e pressionam desenvolvedores a criar jogos abarrotados de “conteúdo”, que exijam dezenas e dezenas de horas para ser completados.

Existe, como era de esperar, uma reação a essa tendência. De walking simulators como Go home e Everybody’s gone to the rapture (jogos em que se percorre o cenário caminhando, em geral recolhendo pistas e resolvendo quebra-cabeças simples) a títulos como o recente Sable, um sereno e belíssimo game de mundo aberto baseado em exploração do mundo, sem combate nem sistemas de progressão vorazes, há desenvolvedores suprindo uma demanda por jogos mais curtos e que não parecem querer devorar o nosso tempo com gameplay loops viciantes e intermináveis. Na plataforma independente itchi.io, abundam joguinhos experimentais que duram poucos minutos ou convidam os jogadores a experiências contemplativas e introspectivas, como pequenos poemas digitais interativos.

Far from noise, criado por George Batchelor, é para mim um dos mais interessantes exemplares desses pequenos jogos contemplativos. Sua narrativa transcorre em menos de 24 horas no tempo do jogo, e em no máximo duas horas no tempo do relógio do jogador, e se passa em apenas um cenário: um penhasco à beira-mar. Seu gameplay consiste em escolher opções de diálogo e assistir ao avanço da história. Para alguns, ele talvez nem seja um jogo: não há desafios a superar, regras, recompensas quantificáveis. Para outros, poderá representar o que a linguagem dos jogos eletrônicos tem de melhor: a imersão eficaz dentro de um mundo digitalmente criado, com uma narrativa que é amplificada emocionalmente pelo mero fato de que precisamos fazê-la avançar com cliques em botões. Essa narrativa procedimental está, é claro, a serviço de uma boa história.

Modelados em 3D, vemos uma cena de entardecer. O horizonte está laranja, com algumas nuvens. À esquerda, vemos um carro branco com detalhes em laranja. À esquerda, um cervo.
Frame do jogo Far from noise

Logo que iniciamos uma nova partida de Far from noise, nós nos deparamos com sua situação inaugural: há um carro dependurado na beira de um penhasco, balançando para a frente e para trás. O mar cintila até o horizonte, a vegetação dança na brisa, borboletas voejam. A única ocupante do carro (não sabemos disso no começo, mas logo os detalhes vão surgindo) é uma garota de 20 e poucos anos, que foi parar ali por acidente. Uma das primeiras opções que temos é gritar “Olá!” ou apertar a buzina. Apertando a buzina, pássaros que estavam ocultos na árvore próxima se assustam e saem voando. Nas falas (ou pensamentos) seguintes, a protagonista avalia a situação. Há opções otimistas e pessimistas. Nas primeiras, ela considera que aquilo “é só um penhasco” e deve haver alguma solução para sair dali com vida. Nas opções pessimistas, ela dirá que tanto faz se o carro despencar ou cair para trás em segurança. A vida não vale grande coisa mesmo. Nesses primeiros minutos, o jogador aprende as regras essenciais: o mundo eventualmente reage às nossas palavras e ações; com frequência podemos escolher entre reações animadas e sombrias; as poucas coisas que ocorrem ocorrem lentamente. Logo percebemos que, nesse jogo, jogar é sobretudo olhar. Olhar e deixar o tempo passar. Absorver o que se apresenta na tela, dando nossa sutil, mas significativa, contribuição.

A tarde vai caindo. O diálogo solitário da garota com ela mesma será interrompido pela aparição de um esquilo e, algum tempo depois, de um cervo. Lá pelas tantas, o cervo fala. Ele responde a nossas perguntas com tiradas filosóficas que às vezes mais parecem charadas. O cervo a incentiva a se acalmar, a respirar fundo, e a enxergar o impasse de um ponto de vista desapegado. Tudo o que importa está no momento. A garota não está sozinha. O mar está ali. Ele, o cervo, está ali. Se ela encarar as coisas do jeito ideal, vai bastar. O sol cai ao encontro do horizonte, a noite se aproxima. O jogador clica, clica, escolhendo as reações e falas da garota. Aos poucos, ela revela ao cervo a história de sua vida, suas lembranças e inseguranças. Algumas coisas acontecem. Não quero revelar muito. Mas surgem outros animais, pontos de interesse no céu estrelado, uma tempestade. O jogo acabará ao amanhecer. A protagonista, após passar a noite em claro nessa situação excepcional, estará transformada.

Como em um bom conto literário, Batchelor extrai o máximo de uma premissa em pouco espaço, economizando recursos. A jovem motorista do carro está literal e figurativamente “à beira do abismo”. Com a ajuda do cervo, ela identifica aos poucos a natureza peculiar do estado em que se encontra: como que congelada nesse instante entre a vida e a morte, entre o dia e a noite, entre a vigília e o sono, incapaz de fazer nada, numa espécie de limbo, com uma bela paisagem oceânica diante dos olhos. Ela ainda não está morta, tampouco está sozinha.

Somos instigados a questionar a concretude do cervo falante: seria uma ilusão dessa mulher solitária que, diante da própria finitude iminente, entra em estado alucinatório? Ou o cervo falante é o que é? O próprio cervo argumenta: não há como determinar se a realidade percebida por um ser é mais verdadeira que a realidade percebida por outro. Ao amanhecer, a protagonista dirá a seu improvável companheiro: “Essa noite… como tantas coisas podem acontecer? Sinceramente… não me sinto mais a mesma pessoa”.

E que tantas coisas aconteceram? Elas se passaram sobretudo na introspecção da personagem, e também na do jogador. Jogar Far from noise leva menos de duas horas, mas o jogo parece durar muito mais, pois o espaço e a duração se expandem na imaginação. Mesmo jogando no meio da tarde, senti aquela sonolência que surge quando lemos um livro relaxadamente; tive de levantar um pouco e passar um café antes de terminar (e, enquanto o passava, lembrei do livro de Jonathan Crary sobre o sono no capitalismo tardio). Isso não significa que a narrativa era enfadonha. Significa que o jogo, mesmo enquanto me mantinha envolvido na história e interessado no desfecho, me fez mergulhar numa introspecção serena que quase se extinguiu no meu dia a dia. Ele me convidou a não fazer quase nada, prometendo que ao fim desse período de não fazer quase nada eu obteria alguma ponderação significativa, uma transformação qualquer, mesmo que eu não tenha produzido nada, nem superado desafios, nem vencido oponentes, nem acumulado riqueza, nem completado sequências de demandas que apenas se ramificavam em mais demandas que eu era compelido a completar para tentar amenizar inutilmente essa sensação de que ainda estava perdendo ou devendo um monte de coisa.

Far from noise cumpre sua promessa. Com um final ambíguo, é claro. Sua narrativa é satisfatória em si, mas também nos incentiva a pensar como é válido se colocar fora, nem que por duas horinhas, do fluxo algorítmico de produtividade constante que nos envolve como se fosse inevitável. As alternativas estão no nosso modo de prestar atenção. Obrigado, cervo.

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