por Ramon Vitral

 

Não vejo justificativa para o luxo excessivo presente em grande parte das edições de histórias em quadrinhos publicadas no Brasil. Para mim, poucas coisas são tão representativas da vacuidade colecionista, consumista e ostentatória que se apropria do mercado de HQs como uma edição em capa dura com verniz localizado, hot stamp e outras firulas sem pé nem cabeça que quase nunca acrescentam à leitura de uma obra.

Fazer e publicar quadrinhos é caro, mas sou contra qualquer excesso que encareça e elitize ainda mais essa experiência. Algumas das minhas leituras preferidas dos últimos meses não poderiam estar mais distantes disso: publicações baratas, grampeadas e com grandes histórias.

A Coleção Ugritos, do selo Ugra Press, consiste em edições com histórias em quadrinhos com início, meio e fim no formato 10,5 x 15 cm, em preto e branco e apenas 20 páginas. Publicada desde 2015, é um dos projetos mais consistentes das HQs nacionais, mantendo sua qualidade e com uma linha editorial bem resolvida desde seu primeiro número. Suas três edições mais recentes me chamaram atenção por diferentes motivos.

Felipe Portugal é o autor de Rubik (Ugrito #22), lançado em dezembro do ano passado. O traço cada vez mais elegante e conciso do autor se contrapõe a uma trama incômoda e acelerada sobre duas quadrinistas atormentadas por um cubo mágico. Influenciado por artistas como Daniel Clowes e Hartley Lin, Portugal é um dos autores nacionais que acompanho com mais atenção e me impressiona principalmente sua clareza narrativa. 

O Ugrito #23 é de autoria de Gabriel Dantas e ambientado no “gabrieldantasverso”, protagonizado por personagens que fizeram a fama do autor nas redes sociais. Com o título Uma última chance para o mundo, o gibi mostra dois jovens empenhados em impedir um ritual para causar o fim do mundo, envolvendo uma espécie de clone do músico Michael Jackson. Dantas administra com excelência suas medidas de fofura, poesia e subversão.

E o recém-lançado Ugrito #24 é da quadrinista Amanda Miranda, autora de Hibernáculo (independente), Sangue seco tem cheiro de ferro (Des.Gráfica) e Juízo (Coleção Tabu/Editora  Mino). Batizada de Aparição, a HQ apresenta uma trama de terror psicológico com elementos sobrenaturais. Intercala relatos jornalísticos sobre o desaparecimento de uma mulher e a comoção de devotos com a suposta aparição da imagem de Nossa Senhora em uma janela. Em meio a isso, uma menina ajuda o pai no açougue da família.

A autora me conta que já vinha pensando há alguns anos em produzir uma HQ encenada mais próxima de sua realidade, tendo como pano de fundo uma cidade do interior do estado de São Paulo e sob forte influência da fé cristã. Mas Aparição só acabou sendo desenvolvida após ela ser convidada para produzir seu Ugrito.

“Eu me lembrei dessa notícia sobre a aparição da imagem de uma santa na janela de uma casa, lembro de ver isso na TV quando era criança, a partir dessa lembrança comecei a escrever o roteiro”, diz Miranda. “Foi um desafio! Há muito tempo que eu não pensava num grid de página que desse certo para esse formato A6. Mesmo assim, achei bem divertido.”

“Mas o que mais impactou o roteiro foi o sentimento angustiante de, praticamente todos os dias, ouvir no jornal regional algum caso de feminicídio. Um em específico marcou por ter acontecido no meu bairro, onde um cozinheiro assassinou a ex-esposa na frente dos filhos e depois se suicidou.”

Grande parte do impacto da HQ está na arte de Amanda, com jeitão de rascunho, expressiva e cheia de imperfeições. Também chama atenção seus designs de páginas, com quadros irregulares e desalinhados, como uma trilha sonora estridente de filme de horror.

Miranda não esconde sua paixão pelo gênero, seja em qual linguagem for, mas principalmente cinema. E entre seus subgêneros favoritos ela cita horror psicológico, body horror e produções experimentais e de baixo orçamento dos anos 1970.

Ela chama atenção para os trabalhos de diretoras brasileiras como Gabriela Amaral Almeida e Juliana Rojas, mas destaca o impacto de produções mais antigas em sua formação: “A primeira fase do David Cronenberg, a histeria do Andrzej Zulawski, a violência desregrada dos anos 1970 e até produções mais sutis que nem chegam a entrar 100% no gênero, como A mulher sem cabeça, da Lucrecia Martel”.

Mas Amanda ressalta as peculiaridades de contar uma história de terror em formato de histórias em quadrinhos em detrimento de outras linguagens. Ela cita os japoneses Suehiro Maruo e Junji Ito como dois dos grandes representantes do terror quando o papo são HQs.

“O horror funciona melhor em mídias que dispõem de maior controle na experiência do público”, analisa a autora. “Quando entrávamos em uma sala de cinema, estávamos entregues à nossa própria sorte. Em uma HQ é um pouco mais difícil fazer a grande revelação ou tentar assustar de súbito o leitor. Mas é possível causar impacto usando outras ferramentas narrativas, envolvimento, virada de página etc.”

“Dentro da técnica de viradas, o Ito é um mestre, mas tendo a me interessar mais pelo formato do Suehiro Maruo, que assusta através do absurdo, incômodo e desagradável”.

Repito: tudo isso em apenas 20 páginas em preto e branco e formato de bolso. Os Ugritos são respostas e lições a um mercado viciado em ditos clássicos e luxos descabidos e pouco aberto ao novo. As 24 edições que compõem a coleção até o momento funcionam como um catálogo com alguns dos principais representantes da vanguarda dos quadrinhos nacionais.

A capa da quinta edição da revista Plaf, com arte do quadrinista Rogi Silva. A arte possui diversas cores, retratando alguns animais, como um jacaré, uma cobra e uma onça. Na parte de cima, mais ao canto direito da imagem, o logo da revista em vermelho e amarelo.
A capa da quinta edição da revista Plaf, com arte do quadrinista Rogi Silva (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Paulo Floro, coeditor da revista Plaf

O jornalista Paulo Floro é o convidado da vez da seção de entrevista que fecha cada edição da Sarjeta. Editor do site Revista O Grito!, Floro também é um dos editores da revista Plaf, publicação impressa especializada em histórias em quadrinhos recém-chegada à sua quinta edição. A matéria principal dessa Plaf #5 trata da produção latino-americana de HQs. A arte da capa é do quadrinista Rogi Silva e a revista ainda conta com críticas, reportagens, entrevista com a autora equatoriana-colombiana Power Paola e HQs inéditas de Rogi Silva, Puiupo, Jéssica Groke, Talles Molina e Jarbas.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Acho que a diversidade de estilos, gêneros, nacionalidades, ter muitas opções de leitura, isso é o mais relevante. São muitos lançamentos, mas acho que há espaço para crescer ainda mais. Mas, como essa resposta pode parecer um clichê, eu destacaria a produção autoral de novos nomes, que seguem publicando apesar da conjuntura da pandemia e da falta de eventos de quadrinhos. É o caso de Ilustralu (autora de Arlindo), Aline Zouvi (que vai publicar livro novo) e Gabriela Güllich (Jogo de sombras).

O que mais o interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Tem um lado meu que gosta muito de experimentações na linguagem, dessa capacidade dos artistas em avançar nos limites daquele meio, de dobrarem os limites à sua visão artística. Isso vale para quadrinhos, músicas, filmes. Mas ultimamente o que tem me chamado mais atenção são as boas histórias em primeiro lugar. Tenho buscado cada vez mais narrativas imersivas, que buscam algum ponto de contato para segurar a empatia do leitor na trama, nos personagens. A experimentação é legal, mas, ao mesmo tempo em que fascina, também traz um distanciamento. Tem HQs que conseguem unir uma boa história com excelente domínio da linguagem dos quadrinhos, e que li recentemente, caso de Sabrina e Oleg – este último tive de dar pausas para enxugar lágrimas. É lindo.

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Tive sorte de ter uma família que lia gibis. Meus tios compravam coletâneas como a Chiclete com banana e alguns álbuns que saíam pela Abril, pela Globo etc. Meu pai lia Tex, muitas tiras e charges. Mas não colecionavam, apenas liam para passar tempo e deixavam largados. E sempre compraram muitas revistas para mim, super-heróis em sua maioria, mas também Disney, Turma da Mônica. Aos poucos fui descobrindo essas outras revistas que ficavam perdidas na minha casa e na casa dos meus avós. Tento criar essas memórias afetivas com minhas duas filhas em relação aos quadrinhos, sempre tentando apresentar coisas legais para elas.

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