por Daniel Galera

O leitor, dependendo da idade, lembrará: houve uma época em que os manuais de instruções, impressos na forma de livrinhos ilustrados, eram um componente importante da experiência de desfrutar jogos eletrônicos. Estamos falando principalmente dos jogos da Nintendo nas eras 8 e 16 bits, dos primeiros títulos clássicos de séries como Zelda, Super Mario e Metroid, e de muitos outros jogos, no PC e em outras plataformas, que não traziam no próprio código instruções que pudessem ensinar o jogador a progredir e desvendar segredos. Descobrir o que fazer com base num processo de tentativa e erro era parte do fascínio que os jogos exerciam. Não havia, como nos jogos de hoje, tutoriais interativos e longas exposições a respeito da história e dos personagens.

Ao mesmo tempo, os jogos eram mais concisos e simples. Os joysticks tinham menos botões. Não se esperava de um jogo eletrônico o mesmo tipo de desenvolvimento narrativo de um romance ou de um longa-metragem. Mesmo assim, decifrar os sistemas de progressão, os segredos e a história sendo contada podia ser difícil ou mesmo impossível. E aí entravam os manuais de instruções e as revistas.

Os manuais continham informações práticas, tais como instruções de como usar os botões para executar determinadas ações ou mapas que iluminavam percursos e locais de interesse em determinadas áreas a ser exploradas, mas também ilustrações e elementos gráficos que em geral apenas sugeriam ou davam dicas sobre o mundo de fantasia em que o jogo se passava. As ilustrações apontavam quem eram os vilões e heróis, a serventia de determinados itens, o significado de certos símbolos que apareceriam nos cenários. Principalmente se você era criança (como era o caso da maioria dos jogadores no despertar da era dos consoles), esses manuais tinham o efeito de mapas do tesouro, de mensagens secretas ou de textos místicos em que descobertas incríveis estavam criptografadas.

Como costumavam estar em inglês, havia também, para jogadores não anglófonos, uma barreira de linguagem que acrescentava uma camada de mistério: nem todo mundo podia entender o que estava escrito nos jogos e nos manuais, e o esforço adquiria certa aura de arqueologia ou xenolinguística, exigindo a decifração de um idioma estranho (os videogames fizeram muitas crianças aprender inglês na marra). Lidos e passados de mão em mão, os manuais ficavam amassados e sujos.

Nas bancas de revistas, as publicações especializadas traziam matérias especiais enumerando segredos e oferecendo raras fotos de fases secretas, chefões, sequências finais. Essa dimensão toda, que podemos chamar de metajogo, existia em páginas impressas, em objetos físicos e manuseáveis, que podiam ser compartilhados entre jogadores.

Entra em cena, na segunda metade dos anos 1990, a web; em seguida, a digitalização de tudo. Tanto os manuais impressos quanto as revistas especializadas migram para a internet na forma de tutoriais, fóruns e revistas digitais, acessíveis a qualquer momento, de qualquer lugar, e os guias de jogo passam a ser compilados pelos próprios jogadores. Já não temos artefatos físicos que são peças narrativas integrantes do conjunto, e sim documentos enciclopédicos e de referência, meros repositórios de informação. No YouTube, a partir de certo ponto, torna-se possível assistir aos jogos sendo jogados, seus segredos são descritos e expostos em vídeo. Surge a experiência frustrante de abrir uma caixinha de um jogo novo ou alugado e descobrir que, em vez de um rico manual de instruções, há apenas um folheto promocional.

Por fim, os próprios jogos passam a nos ensinar como devem ser jogados, não mais por meio de sinais e dicas obscuras, mas eventualmente decifráveis, e sim através da constante aparição de instruções claras ou, em certos casos, condescendentes (o famigerado hand-holding, ou “pegar pela mão”, que incomodou muitos fãs de Zelda em capítulos como Twilight princess e Skyward sword). Reddit, Discord, Twitch e outras plataformas estabelecem de vez a arena da transmissão e discussão digital em torno dos jogos eletrônicos, suas histórias e seus segredos.

A história acima descrita é essencial para entender por que Tunic, um jogo independente de aventura no estilo Zelda, se tornou um dos títulos mais comentados e aclamados dos últimos tempos. Buscando evocar aquela época em que os manuais de instruções, as barreiras linguísticas e a obscuridade narrativa encantavam a imaginação de jovens jogadores, seus criadores tiveram a ideia de fazer para o jogo um manual digital, que pode ser lido em um menu na própria tela da televisão. Uma boa ideia para começar, mas Tunic a explora de modo bem mais complicado.

O manual não está disponível no começo do jogo. É necessário encontrar suas páginas espalhadas, ou escondidas, pelos quatro cantos do mundo. Essas páginas não apresentam somente o tipo de conteúdo que se encontrava nos manuais de outrora: elas também possuem anotações feitas nas margens, como se alguma outra pessoa as tivesse consultado à medida que desvendava os segredos mais profundos de Tunic. São sinais, códigos, desenhos, diagramas, referências entre as páginas, e até manchas de café. Para completar, o manual está escrito numa linguagem rúnica fictícia e quase ilegível (digo quase porque alguns fãs muito dedicados a traduziram, está na internet), criada especialmente para o jogo, com alguns termos em inglês aqui e ali.

Frame do Jogo Tunic. Na imagem há um mapa do jogo com os principais lugares de interesse. Os textos e legendas são uma mistura de palavras em inglês e runas fictícias
Frame do jogo "Tunic" com mapa

Assim, ao trazer para o domínio virtual o tipo de material impresso que acompanhava os jogos do passado, o que Tunic nos apresenta é uma espécie de “metametajogo”: o conteúdo de referência que dialogava com o código é trazido, ele mesmo, para dentro do código e transformado em objetivo crucial para o avanço do jogo, uma vez que é necessário encontrar as páginas do manual para decifrar informações imprescindíveis, sem as quais o jogador simplesmente não tem como saber o que fazer. Sem as páginas do manual, seria necessária uma quantidade provavelmente impossível – uma quantidade computacional – de tentativas e erros por parte do jogador para descobrir a função de todos os itens, o método de abertura de todos os caminhos e os próprios objetivos a ser perseguidos para levar a história à sua conclusão.

Contribui para o efeito geral o fato de que a estética do jogo e do manual de instruções é nostálgica e moderna em doses iguais. Os desenhos e grafismos do manual evocam perfeitamente o visual dos manuais da era Nintendo 8 e 16 bits, e dando zoom chegamos a ver os pontos coloridos de impressão offset; ao mesmo tempo, podemos folhear esse manual virtualmente, em alta velocidade, numa fluida experiência de conteúdo digital. O jogo propriamente dito adota uma estética fofinha, em que blocos geométricos e formas mais suavizadas se combinam em ambientes isométricos que podem lembrar as peças de um jogo de montar, mas sobre os quais incidem texturas refinadas e luzes dramáticas. Esses são alguns dos elementos que fazem Tunic não apenas evocar, mas atualizar para a cultura dos games do presente uma fruição de enigmas e descobertas que parece pertencer ao passado da evolução do meio.

Esse é o maior trunfo de Tunic, e ao dizer isso já preparo o terreno para falar que, em outros aspectos, este é um jogo um tanto problemático. Sua paixão pelos clássicos títulos da série Zelda se estende ao modelo narrativo em torno de uma protagonista infantil – no caso, uma raposinha silenciosa e sem nome, sobre a qual nada sabemos e pouco descobriremos – que acorda em algum lugar sem saber onde está e vai aos poucos explorando um mundo no qual, logo fica nítido, ela está destinada a cumprir uma jornada heroica de iniciação, aqui simplificada nos moldes 1) descobrir uma espada, 2) matar certos inimigos e desbravar certos locais para obter artefatos e habilidades até 3) acessar um “mundo do além”, derrotar um inimigo poderoso e assumir o seu lugar.

Mesmo em Zelda, o tratamento vago desse tipo de narrativa por vezes encurta as chances de um genuíno envolvimento emocional. Esse tipo de jornada de herói cíclica é muito apropriado para o encaixe das etapas e dos desafios progressivos de uma narrativa interativa (e para a produção ilimitada de sequências), mas costuma deixar a desejar em termos de transmissão de ideias ou emoções potentes. Nos mundos de Zelda, costuma haver uma boa dose de cor, variedade e personalidade nos personagens secundários, nas pessoas e nas criaturas que Link encontra pelo caminho, e com quem estabelece, em muitos casos, relações significativas. Em Tunic, o mundo, apesar de muito rico em termos de segredos, percursos e gratificação estética, é tristemente vazio de vida e pessoalidade.

Embora carente de emoção, o mundo de Tunic é arrojado em termos de segredos, mistérios e level design (ou desenho de fases: a arquitetura de rotas, acessos e espaços, livres ou impedidos temporariamente por obstáculos, que o jogador pode percorrer). Descobrir passagens secretas, abrir portas, acionar mecanismos que geram efeitos no mundo, encontrar centenas de baús com itens úteis e artefatos misteriosos, tudo isso é exemplar em Tunic. Este é um mundo que nos convida à exploração por sua própria topografia e tesouros prometidos. Os segredos dos quais está repleto, e que o manual nos ajuda a desvendar aos poucos, são intrigantes e, a partir de certo ponto, bastante obscuros e complicados. Mas o fascínio está sempre lá, temos vontade de saber tudo o que há, de explorar e reler as páginas do manual quantas vezes for necessário, à procura de conexões e insights.

Por isso mesmo, é um tanto incompreensível para mim que os desenvolvedores de Tunic tenham optado por tornar o jogo tão difícil e inconveniente para o jogador. O combate se baseia em mecânicas relativamente simples (pelo menos depois que descobrimos a função dos itens e habilidades principais), mas depois da metade o jogo dá um salto significativo de dificuldade. Os inimigos ficam extremamente evasivos e poderosos e atacam em grupo de forma muito agressiva. Os pontos fixos para salvar o progresso são poucos, e ativá-los faz com que todos os inimigos eliminados ressurjam. Um miasma que recobre parte do cenário e, mais tarde, passa a agir também nos ataques dos inimigos simples não apenas come uma fatia de energia da raposinha, como também encurta o tamanho da própria barra de energia, até que ela chegue ao mínimo e a protagonista morra imediatamente ao sofrer qualquer dano.

Talvez você já saiba aonde estou querendo chegar: Tunic empresta elementos não somente de Zelda, mas também dos jogos da From Software, mais conhecida pela série Dark souls e, recentemente, pelo popular e aclamado Elden ring, jogos em que a dificuldade extrema é parte integrante da experiência. Já experimentei Dark souls e Bloodborne. Desisti de ambos lá pela metade, mas entendo e respeito a proposta desses jogos e o fascínio que exercem sobre uma grande base de fãs.

O que não entendo é como um jogo como Tunic, tão bem-sucedido em construir um conjunto monumental de enigmas em várias camadas, que pede e conquista a vontade do jogador para ser desvendado até o fim, que possui o recurso maravilhoso de um manual recheado de segredos que imploram por investigação paciente e cuidadosa, não entendo, enfim, como esse jogo se beneficiaria de uma dificuldade sádica e de um sistema de fast travel (teletransporte de um ponto a outro do mapa) obtuso e ineficiente. Talvez haja toda uma geração de jogadores, hoje, treinada e convencida de que qualquer game que se preze necessita dessa dose excessiva de obstáculos e frustrações, do contrário algo está faltando

Frame do jogo Tunic. Na imagem, o personagem principal, uma raposa, está em frente a uma grande porta dourada. A porta está em uma grande estrutura que aparenta ser um templo, com duas grandes estátuas de cada lado da porta
Frame do jogo "Tunic"

De minha parte, eu só queria dedicar ainda muitas horas a explorar os segredos de Tunic sem me sentir sufocado a todo instante por mortes, perda de progresso e inconveniências que tornam tudo mais penoso do que deveria ser. Não encontrava um sentimento de recompensa ao superar uma área difícil demais após dúzias de tentativas, e sim uma sensação de perda de tempo, de desvio daquilo que realmente interessava.

Lá pelas tantas, liguei a opção de “No fail mode” no menu de acessibilidade, o que torna a raposinha basicamente imortal, e ainda assim me deslocar pelo mundo me parecia mais penoso do que deveria. É louvável que o jogo ofereça esse recurso, permitindo a cada um optar pelo nível de desafio que prefere, mas isso não muda o fato de que há uma assimetria grave naquilo que Tunic nos convida a fazer e nos empecilhos que nos impõe. Seus defensores poderão me acusar de falta de habilidade e paciência. Na minha opinião, o jogo sofre de um problema de design.

Descobri os últimos mistérios de Tunic, os que exigem mais dedicação mental, assistindo a vídeos no YouTube, pois o estorvo constante dos inimigos me cansou. Se era isso que seus criadores queriam, se era isso que consideram compartilhar uma experiência de jogo em comunidade, creio que há algo errado em seus conceitos de recompensa e superação, e dos prazeres esperados de uma exploração curiosa e interessada. O fascínio exercido pelos mistérios, esse sentimento que nos dispõe a aplicar muito esforço em sua elucidação, sempre será uma função da imaginação. E a lição dos videogames clássicos que encantaram gerações era a de que a imaginação deve ser atiçada, e não espancada até não conseguir mais reagir.

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