por Ramon Vitral

 

Não lembro quem disse, mas concordo: não há nenhuma página de jornal brasileiro que reúna tantos talentos quanto a de tiras do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Vou além: a seção de quadrinhos da Folha é o espaço mais nobre e influente das HQs nacionais. Nobre porque você não vai encontrar em lugar nenhum uma reunião de artistas do nível de Laerte, Caco Galhardo, Fernando Gonsales, Adão Iturrusgarai, André Dahmer, Fabiane Langona e Estela May. Influente porque os trabalhos dos sete podem servir de referência para qualquer pessoa interessada em trabalhar com quadrinhos e humor gráfico. Mas é isso tudo principalmente pelas tiras diárias de Laerte.

Desconheço outra pessoa que faça quadrinhos e que tenha o domínio narrativo e a inventividade de Laerte. Seus experimentos com a linguagem das HQs e as temáticas de seus trabalhos criam um combo sem precedentes. E ela melhora a cada ano.

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Li coletâneas e encontrei em sebos muitos de seus trabalhos para as revistas Chiclete com Banana, Circo e Piratas do Tietê, mas a Laerte que cresci lendo foi a autora da seção de quadrinhos da Ilustrada e de presença ocasional na última página do extinto caderno Folhateen.

Ler as tiras de Laerte na Folha é hábito de infância, que se tornou obsessão quando ela deu início à sua fase Manual do Minotauro, lá em 2004. Passei a ler no jornal e depois a reler no blog homônimo, criado por ela em 2008 (e ainda na ativa). O passo seguinte foi uma tentativa malsucedida de não apenas ler, mas também desvendar as tiras da autora.

Graças a ela concluí que poucas coisas são tão superestimadas quanto compreender uma obra de arte. Hoje, minha relação com as tiras de Laerte está mais próxima da contemplação.

E contemplei recentemente as 416 páginas de Manual do Minotauro, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras. A coletânea reúne mais de 1,5 mil tiras produzidas por Laerte entre 2004 e 2015, durante essa sua fase mais reflexiva, existencial, filosófica, metafísica, experimental – ou como lhe for mais conveniente definir. Eu desisti de definir um gênero ou um conceito por trás desse recorte apresentado no livro. Inclusive, um dos méritos maiores dessa produção recente da artista está no rompimento com todo e qualquer padrão de gênero de HQs. Categorizações à parte, Manual do Minotauro é o título mais importante publicado no Brasil em 2021 até o momento – e acho improvável que saia outro tão relevante quanto esse até o fim do ano.

A capa de Manual do Minotauro, coletânea reunindo tiras recentes da quadrinista Laerte. A capa é rosa, e o nome Laerte está escrito em letras garrafais, no topo da página na cor azul. O personagem Minotauro aparece no centro da capa, sentado em um barco pequeno de madeira.
A capa de Manual do Minotauro, coletânea reunindo tiras recentes da quadrinista Laerte (imagem: divulgação)

Não se trata de uma antologia integral de tudo produzido por Laerte desde 2004, mas, sim, de uma espécie de melhores momentos, com tiras selecionadas pela própria autora com o auxílio do editor Emilio Fraia. Eu bem queria a versão completa, mas compreendo como a quantidade de tiras e a presença de cores encareceriam o projeto a ponto de inviabilizá-lo. Fico na torcida por um segundo volume.

Enquanto ia e voltava nessas mais de 400 páginas do Manual, fiquei pensando como a produção de Laerte reúne os três elementos pelos quais mais me interesso em HQs nacionais: subversão, experimentalismo e bom humor. Ela subverte expectativas e questiona o status quo. Propõe e arrisca novas formas de uso da linguagem dos quadrinhos. E diverte. Cumprir bem ao menos um desses quesitos já é digno de nota, e ela consegue os três.

As tiras do Manual não apresentam os personagens que fizeram a fama da autora. Não constam no livro trabalhos protagonizados por Deus, os Gatos, o Zelador, o super-herói Overman e os Piratas do Tietê. Entre uma e outra figura mais ou menos recorrente estão um minotauro de um chifre só, uma senhora chamada Ruth, um santo recalcitrante, uma deusa e não muito mais do que isso. Também não consta uma temática-padrão.

Meu balanço final é que Manual do Minotauro vai mais para o poético do que para o nonsense. E essa poesia sempre esteve presente nos trabalhos de Laerte, mesmo em suas produções mais antigas. Já foi um poético não tão abstrato como hoje, talvez mais inocente e pueril em épocas de um humor mais escrachado. Mas não deixa de ser uma constante. Já o nonsense, vejo mais presente em suas charges, coerentes com os absurdos da realidade sociopolítica brasileira.

Em meio a várias coletâneas e republicações das obras de Laerte, Manual do Minotauro passa a ser a principal referência para a produção contemporânea da autora. Colocaria ao lado de Muchacha (Companhia das Letras) e Modelo Vivo (Boitempo Editorial) como as três grandes vias de acesso aos trabalhos recentes de Laerte e três das principais publicações com o nome dela na capa.

Modelo Vivo foi a parceria final de Laerte com o lendário Toninho Mendes (1954-2016), um dos fundadores da Circo Editorial, que publicou as revistas Circo, Chiclete com banana e a própria Piratas do Tietê. O livro reúne ilustrações de modelos humanos da autora com HQs antigas produzidas para as publicações capitaneadas por Mendes. Apresenta uma Laerte pouco conhecida do público, com seus desenhos livres, e a quadrinista dos anos 1980/1990.

Muchacha talvez seja a grande narrativa longa de Laerte até o momento, apresentando um drama folhetinesco ambientado nos bastidores de um seriado de TV dos anos 1950, o surto do protagonista da produção e as aventuras imaginárias vivenciadas pelo ator. Li e reli Muchacha algumas vezes, e ela tem lugar de destaque no meu cânone pessoal de maiores HQs nacionais de todos os tempos. Cânone que agora ganha a companhia de Manual do Minotauro.

Página de Ache os Gatos, HQ de Manda Conti. Imagem branca com o desenho na cor preta, com rabiscos leves.
Página de Ache os gatos, HQ de Manda Conti (imagem: divulgação)

Três perguntas para... Manda Conti, autore de Sonho, Ache os gatos e Charcoal

Descobri o trabalho de Manda Conti via redes sociais. Seus quadrinhos estão disponíveis de graça no Instagram e em sua página pessoal. Também recomendo a assinatura de sua ótima newsletter, com reflexões sobre técnicas e inspirações e a apresentação de bastidores de seus trabalhos, além de HQs inéditas. Convidei Conti para responder às três perguntas da seção que fecha esta 21a Sarjeta.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Acho que me emociono particularmente com a cena independente, que foi grande parte do que me atraiu para os quadrinhos em primeiro lugar! Há uma diversidade tão grande de propostas visuais, de narrativas – isso tudo me deixa muito genuinamente empolgade e com vontade de desenhar. Acho que no momento o que talvez mais me emocione sejam os trabalhos coletivos, colaborações entre artistas dessa comunidade que geram coisas incríveis. 

O que mais interessa você hoje em termos de histórias em quadrinhos?

É meio difícil dizer, não faz tantos anos que eu comecei a me interessar mais intensamente por quadrinhos, então às vezes tenho a sensação de que ainda existe meio um encantamento de criança de estar descobrindo as coisas pela primeira vez; coisas de vários gêneros, narrativas mais ou menos experimentais... Apesar disso, acho que histórias sobre infância, amadurecimento, memória e identidade são as que tendem a me emocionar mais, por serem questões que falam muito comigo pessoalmente.

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Mais do que a lembrança de ler quadrinhos, tenho muito forte a lembrança de uns caderninhos de desenho que eu tinha e levava para a escola – eram uns cadernos com capa laranja e meio horizontais, e lembro que gostava de desenhar umas historinhas sem falas (as falas eu pensava). E enchia todos os caderninhos assim! Eu nem estava pensando em quadrinhos na época, mas hoje em dia acho que era isso que eu estava fazendo, e é uma memória pela qual tenho muito carinho.

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