Camila Svenson

Fotografia colorida vertical de um stand de venda de imobiliária. A pequena construção tem paredes brancas e janelas que vão do teto ao chão. Entre a construção e a rua há um tapume azul. Ao fundo, três prédios altos.
(imagem: Camila Svenson)

Hoje tenho que sair de casa para enviar uma carta pelos Correios, comprar papel higiênico, ir ao banco, resolver burocracias e talvez encontrar uma papelaria no caminho para comprar uma boa caneta. Tenho também que escrever este pequeno texto sobre saudade. Fico irritada porque, atualmente, saudade é tudo o que tenho. Tiro o feijão do molho e coloco na água para cozinhar. Levo a cachorra para passear e a deixo estacionada na porta do mercadinho, enquanto compro café. Converso com uma pessoa que me diz que as ficções são “delírios da burguesia” – neste mesmo dia, faço uma fotografia da construção ao lado de casa. Desde que me mudei para cá, ouço o barulho da obra diariamente. Tem dias que as paredes tremem, tem dias que só dá para escutar um martelo ou outro. Antes de subir o prédio, descubro que a construtora estava na verdade subindo o stand de vendas, de material mais fino e barato, com maquininha de café expresso e mesas de plástico. O esforço diário do fazer, para um monumento provisório. Nesta semana a grade azul que fechava o terreno da obra foi retirada. Em um gesto ridiculamente otimista, ninguém cortou as duas árvores que estavam lá antes, e que agora estão rodeadas por um piso de concreto e um banner gigante onde se lê: “A sensação da praia, pertinho de você”. O privilégio de pertencer. Na fotografia em render, um complexo de piscinas integradas. Imagem bonita e harmoniosa.

Essas duas árvores vão presenciar o desaparecimento de um mundo inteiro, de uma cidade toda, de um bairro. Sinto saudades dos pequenos sumiços e desaparecimentos que já presenciei com o meu próprio corpo também. Dois homens de terno cantando “Deslizes” em um boteco qualquer, quando nos sentamos em uma mureta para assistir à demolição violenta de uma casa inteira. Um casal que dividiu uma porção de pastel usando miniguardanapos cheios de óleo; o cheiro de suor que sobe quando muitos corpos se encostam em um dia de Carnaval.

Lucas Cordeiro

Fotografia horizontal colorida mostra duas pessoas da cintura para cima se abraçando. À direita, uma mulher negra com cabelo preto trançado e raízes brancas, com brinco de ouro e vestindo uma blusa florida branca e azul marinho. Ela está de olhos fechados e apoia seu rosto no ombro da outra pessoa. A pessoa da esquerda também é negra e tem rosto e corpo cobertos por uma longa peruca de palha, que forma um coque em cima da cabeça e tem algumas contas presas nela. Ao fundo há vegetação.
(imagem: Lucas Cordeiro)

Saudade que se finda no abraço; encontro de braços testemunhos do fim de um sentimento.

Nunca a saudade aqui foi tão grande, nunca estar longe causou tanta agonia. E, mesmo longe, rezar, lembrar, oferecer, cantar, acender uma vela trouxeram fim à saudade que ainda insiste em morrer num abraço.

Os tantos que se foram sentiram e deixaram saudade, muito desses partiram sem abraço. Na cultura de que eu venho, pedimos então que a terra os abrace, e que floresça e renasça bela. Atotô!

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

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Bruno Inokawa e Daniela Paoliello são os novos convidados e participam desta coluna até novembro, transformando palavras em imagem e texto