por Marina Nacamuli e Walter Thoms

 

Marina Nacamuli

Fotografia de um vão formado no chão da rua. Se vê um reflexo de árvores e céu na formação de água.
Inventário: margem (imagem: Marina Nacamuli)

Margem, para mim, significa onde alguma coisa termina e onde outra começa. Dentro desse conceito, busquei margens pelo centro da cidade, usando uma câmera analógica descartável, com a qual eu também teria uma margem de erro. Ao caminhar, olhando para o chão, buscando limites, bordas e linhas, encontrei esta valeta/canaleta que, por nela passar água, também poderia vir a lembrar um rio ou um canal. Esses escoamentos beiram as ruas e se tornam margens das ruas.

Walter Thoms

Fotografia de um tronco de árvore, em meio a folhas verdes de uma planta. O tronco está cheio de pequenos cogumelos laranjas.
Inventário: margem (imagem: Walter Thoms)

Acho o funcionamento da memória algo tão fascinante que, para mim, as imagens de um acontecimento passado surgem pouco a pouco pelas beiradas da lembrança. A narrativa que se constrói em minha cabeça sobre uma trilha que percorri 15 anos atrás me relembra o começo de uma relação importante com fungos e cogumelos, que só agora vejo como essencial.

Acompanhado de três amigos, lembro de saltarmos de carona numa praia do litoral catarinense na cidade de Penha e descermos a estrada de terra rumo a uma área cercada que dava próximo à praia. Ao pular o limite da cerca de arame farpado, estávamos afirmando uma posição e dispostos a lidar com o inesperado. Cruzamos com alguns pescadores, que não impediram a gente de continuar, mas foram pontuais em dizer que estávamos por nossa conta. Assentimos com a cabeça ao aviso.

Deslumbrados com a sensação de pular algumas cercas, lidar com sinais de tensões e fazer uma trilha não oficial pela beira do mar, sentimos a adrenalina baixando e dando espaço para que a endorfina e a serotonina nos acompanhassem. Depois de uma euforia, cruzamos a restinga da praia em silêncio e avistamos alguns bois que ficavam vagando na beira da grama próximo a uma praia.

Ali lembro do primeiro contato com um cogumelo mágico; eram alguns Psilocybe cubensis crescendo livres nas bordas da praia. Cogumelos com princípios psicoativos que cresciam em conjunto, porém em grupos espalhados. Lembro que ficamos curiosos, mas não muito mais que isso, e seguimos a caminhada seduzidos pela ideia de ver a paisagem inóspita e rochosa, com precipícios e o mar arrebentando a sua beirada.

Eu não fazia ideia da importância daqueles pequenos seres silenciosos àquela época. Também não me dava conta de que caminhar e encontrar cogumelos são atividades que se retroalimentam, o corpo entra em um estado de contemplação e prazer, os sentidos ficam mais aguçados e a sensibilidade aflora. O tempo é outro no encontro com os cogumelos; é necessário ter paciência, e não pressa, para sentir um dos mais belos espantos que existe.

Há uma diversidade enorme de cogumelos onde quer que haja vida. Esses seres silenciosos são espécies companheiras de outros seres não humanos e, através de relações intraespecíficas, conversam entre si usando impulsos elétricos e servem de canal de comunicação entre raízes de árvores e plantas, sempre buscando ajudar na troca de minerais.

A superioridade humana nos cega, subestimamos a natureza – e ainda mais se ela for pequena como essa que cresce às margens de estradas, no canto de árvores e nos quintais. Sem fungos é impossível que exista uma paisagem multiespécies que pulsa vida, e através dessa vida existe muita sabedoria.

O urupê, ou Pycnoporus sanguineus, um fungo laranja que pode ser avistado de longe, é encontrado sobre troncos caídos na mata ou na floresta. Além de ser responsável pela decomposição daquele tronco, ajudando na regeneração florestal, pode ser utilizado para tratar cicatrizes humanas, como afirmam os saberes populares e campesinos que resistem na força da oralidade.

Penso que as imagens para construir um futuro possível em que coexistamos com inteligências não humanas estão muito mais próximas do pé de guasca que se apoia nas costas do Seu Olivares no fim do dia ou do urupê coletado para estudo, que traduz a ideia de companheirismo interespecífico com duas folhas que o atravessam.

A sabedoria e a noção de companheirismo que os cogumelos e fungos carregam estão com eles nessas margens indomáveis, como bem disse Anna Tsing, e basta somente a nós escolher olhar para as beiradas e aprender com eles para seguirmos em frente.

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

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Em cima de um papel branco, há uma foto em preto e branco. A fotografia mostra um homem olhando para frente. Só os olhos, o nariz e parte do cabelo são visíveis.

Inventário: origem

Marina Nacamuli e Walter Thoms apresentam sua segunda colaboração para a coluna “Inventário” – que, neste mês, traz a palavra “origem”
Imagem em preto e branco de uma floresta, com árvores altas, e muita fumaça. No chão há muitos galhos secos.

Inventário: Fluxo

Neste mês, Dalila Coelho e Ubiratan Suruí transformam a palavra “fluxo” em imagem e texto