por Dalila Coelho e Ubiratan Gamalodtaba Suruí

 

Ubiratan Suruí

Fotografia em preto e branco dividida em três quadros. No primeiro, se vê uma estrada vazia. No segundo quadro se vê um homem de costas, sem camiseta, com pinturas no corpo e um cocar. Na terceira foto o mesmo homem aparece de corpo inteiro encarando o mar.
(imagem: Ubiratan Suruí)

O Brasil é um país plurinacional, apesar de que nem toda a sociedade aprendeu ou respeita isso. A nossa pátria é constituída de povos diferentes, que habitam há milhares de anos nesta terra chamada Brasil. Centenas de povos já habitavam neste território, onde não havia limites e fronteiras, o que levava a conflitos com outros povos em busca de novos territórios.

Os Paiter Suruí [povo indígena] resistiram a todos esses processos de domínio desde a invasão europeia e ainda trazem consigo todos os seus conhecimentos ancestrais e um conjunto de relatos históricos que relatam a origem e o fim do nosso povo. Essas analogias narradas na concepção paiter (gente de verdade) ajudam e atrapalham ao mesmo tempo a tentativa de interpretar a lógica da existência da humanidade. São as histórias do mundo: dos começos e dos vários fins da humanidade, dos seres, da noite, num mistério ainda maior, com os primeiros donos-do-dia que criam a si mesmos. Cito abaixo uma parte sobre O caminho dos mortos, “O Marameipeter”:

A ponte

O final da viagem é travessia de um rio, para chegar à casa de Palob (nosso pai). Há uma ponte, que é semelhante a um barco. Vem pegar cada alma e a carrega para o outro lado. Se a pessoa, em vida, fez muitos erros e trabalhou pouco, a ponte, chamada Ikabekata, o joga no rio e a alma afunda de vez. Os donos-do-dia, Garbaiwai, homens ou mulheres com força, atravessam. Na travessia, muitas vezes veem Lakapoy, o espírito alto, comprido, sobrevoando o rio, com seus colares e pulseiras de cobra, seus carrapatos de escorpião grudados nos testículos, com seu jabuti Amoa de estimação. Lakapoy não precisa de ponte para cruzar o rio, voa ou passa andando, por mais profundas que sejam as águas.

Essa parte da narrativa foi contada pelo pajé Dikboba em 1992 e, apesar de parecer um conto de ficção, é uma visão que o pajé do meu povo tem durante os rituais sagrados, momento de contato com os espíritos das águas, da floresta e dos céus.

Dalila Coelho

Fotografia mostra uma fogueira no centro de um ambiente. Não é possível ver nada além da fogueira, já que todo o entorno está sem iluminação, deixando a foto completamente escura.
(imagem: Dalila Coelho)

passei um mês tentando escrever ficções sobre você, mas não consegui.

é estranho ter algo que me deixa tanta marca, no meu corpo, nos meus dias, nas minhas criações, nas minhas histórias, e não conseguir dar um nome pra isso. não poder dar um lugar pra isso. não saber se é uma história só minha ou se de fato é algo para além da minha cabeça. porque só sei do que eu sinto. de ti, não sei (quase) nada.

nos meus sonhos mais intensos, você afirma o que eu gostaria de ouvir. o que sou, o que somos, o que está acontecendo.

quando penso em ti, me vem a palavra cadência. penso em como seguimos em outro tempo. gosto de lembrar do dia em que me vi sentada no chão do banheiro insistindo pra você ficar mais um pouco.

obrigada por vir
obrigada por ficar
obrigada por ficar mais um pouco

sinto revelar outra pessoa quando estou contigo – mas só contigo. é como se eu acessasse outra versão de ti, uma pessoa completamente diferente de quem é. que não existe, que nunca vi por aí, que só vejo quando estou só contigo.

mas sim, vamos escrever uma ficção. nas minhas imaginações mais profanas, criamos meninos com pés sujos no meio do nada, queimando tudo que não mais importa.

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

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