por Ailton Krenak

Um ano depois do início da pandemia, quero falar sobre nossa identidade, sobre cultura, sobre as diferentes escolhas que nossas culturas nos levam a fazer. Eu estava pensando no dilema que vivemos nos últimos anos, mas todo o século XXI também é caracterizado por isso, que é a movimentação de pessoas pelos continentes, pelos países, que resultou no que chamamos de refugiados.

Veja também:
>>
Arte e sanidade: Seminário arte como respiro debate um ano de pandemia
>> Isolamento em imagens (artistas em tempos de pandemia)
>>Caramba!: um ano de pandemia, por Silvero Pereira
>>Infinita: um ano de pandemia, por Tulipa Ruiz

Paisagem de montanha ocupa toda a imagem.
A montanha sonha com o rio voador: nuvens... (imagem: acervo pessoal)

Nós estamos vivendo um tempo em que os moradores do planeta Terra não conseguem dar conta de compartilhar a vida; eles produziram muita pobreza, desigualdade. Tem gente vivendo como “refugiado ambiental”. Um refugiado ambiental é aquele que perdeu seu território, sua ecologia, seu modo de vida e teve de perambular pelo mundo sofrendo discriminação e violência, que é uma marca, também dura, deste século XXI.

Se produzimos “refugiados ambientais” é porque estamos salgando a terra, no mau sentido. Ela está se tornando um lugar impossível para as comunidades se constituírem e viverem continuadamente, os chamados povos tradicionais – aqui no Brasil, a gente tem esse termo, povos tradicionais se refere aos quilombolas, às comunidades indígenas, aos ribeirinhos, aos seringueiros, aos extrativistas da Amazônia.

Uma característica comum dessa constelação de povos é que eles vivem em comunidade, seu acesso ao território é comunitário. E existe o cultivo de uma prática que proporciona um tipo de autoajuda, de constante solidariedade, compartilhamento entre as pessoas, da roça, da horta, da pesca, da comida, do campo, da caça, dos lugares que percorrem, são todos territórios comunitários. Quilombo é comunitário, terra indígena é comunitária, reserva extrativista é comunitária.

Esses modos de vida comunitários incentivam a criança, desde sua formação mais tenra, a ser uma pessoa coletiva, uma pessoa que se interessa por tudo que pode ser compartilhado, que pode ser experimentado como um comum, um território comum, uma água, uma vida. Essas perspectivas constituem pessoas coletivas.

Contra essas pessoas coletivas, temos cerca de 70 a 80% da população do nosso país, e podemos também falar de todo o planeta, que vive concentrado em grandes centros urbanos. E alguns grandes centros bem antigos, na Europa principalmente, e na Ásia também. Gente que já vive em condição urbana há séculos, há milênios.

Essa forma de vida altamente desenvolvida e concentrada nas grandes metrópoles do mundo, e também aqui no Brasil, nas grandes cidades, criou uma cultura de individualidade. As pessoas moram individualmente. Mesmo em uma família, o avô, o tio, os primos, os cunhados, os entes mais próximos, além do irmão, do pai e da mãe, não vivem juntos, eles vivem separados, às vezes numa outra cidade, às vezes até num outro país...

Abaixo, mais imagens dos meus dias, dias coletivos, neste primeiro ano de pandemia.

Montanha verde ocupa todo o espaço da imagem. O céu aparece sem nuvens.
Takrukrak: a montanha dorme, é favorável hibernar também (imagem: acervo pessoal)
Pé de mamão carregado de frutos.
O pé de mamão nasceu e cresceu, deu frutos para alimentar pássaros e gente (imagem: acervo pessoal)
Plantação de milho e batata.
Milho e batata crescem no isolamento e tornam-se alimentos (imagem: acervo pessoal)
Panela aparece no fogo aceso em chão gramado.
A panela que guarda o fogo emborcada sobre brasas (imagem: acervo pessoal)

Ailton Krenak é líder indígena, ambientalista e escritor.

Veja também
Mulher lê um jornal, sentada em uma cadeira de avião. O jornal está parcialmente na frente do seu rosto, mas ela está séria, com um laço cor de rosa na cabeça.

Infinita: um ano de pandemia, por Tulipa Ruiz

Cantora esteve entre os artistas que falaram aqui no site sobre a experiência de um mês em isolamento, em abril de 2020. Agora ela volta para contar o que fez e como viveu nesse um ano de pandemia