por Alexandre Ribeiro

 

Uma lembrança cristalina. Faltavam poucos dias para meu 16° aniversário, e só o frio do mês de julho não me deixava caminhar sozinho. Faltei à escola pela manhã porque cheguei tarde demais do trabalho. Mesmo assim acordei cansado de viver. Algo entre a infelicidade e o uniforme do hotel me transformava em um alienígena caminhando pela favela. Na encruzilhada da primeira esquina, o comentário me encontrou:

“Aê, molezinha, que vida mansa, hein?”.

Todo o misto de ódio com consciência de classe me esmurrou em uma pancada só. O comentário veio de um amigo meu. Da pele escura. Marginalizado. Alienado. Nos olhos dele, eu, que trabalhava “na cidade”, era o mais próximo de uma vida privilegiada. Até pensei em parar para conversar, mas... Espelho de ponto não respeita questões sociais. Era dia de jogo da Copa do Mundo e eu segui com meu pensamento para o hotel:

“Será que em algum canto deste planeta tem gente no mesmo perrengue que nóiz?”.

Foto dos "pontos sociais queimados", as "favelas" da Alemanha (imagem: Mato)

O futuro é incerto e sua poética é brilhante. O menino que chorou no saguão do hotel ao ver sua nação humilhada com sete gols ganhou uma bolsa de estudos no outro lado do mundo e hoje pode refletir sobre a realidade dos “pontos queimados” do país apresentado como vencedor. Mas será que esse tal “vencedor” é isso mesmo?

Primeiro de tudo: o que são os “pontos queimados”? Sozialer Brennpunkt ou, em tradução livre, “pontos sociais queimados”, é o padrão epistemológico utilizado para descrever uma “favela” alemã. Segundo a definição da Associação Alemã de Cidades e Vilas (Deutscher Städtetag), são “áreas residenciais em que os fatores de impacto negativo nas condições de vida dos seus habitantes e, em particular, nas oportunidades de desenvolvimento das crianças e adolescentes são mais comuns”.

A imagem que passa na minha cabeça ao pensar em uma “favela alemã” é a das cohabs da Zona Leste de São Paulo. Em sua origem, os prédios que hoje são os Brennpunkte foram construídos aos poucos depois da Segunda Guerra Mundial. Nas periferias das cidades, eles tinham o intuito de abrigar imigrantes e trabalhadores da classe média, porém, dentro do grupo dos trabalhadores alemães, o projeto teve baixa adesão e foi um fracasso.

Com o passar dos anos essas regiões periféricas das cidades se tornaram pontos centrais da população imigrante e, consequentemente, mal vistos pela sociedade conservadora alemã. Infelizmente, essas são áreas em que os índices de pobreza, criminalidade e desemprego são muito acima da média. Alguns apartamentos são abrigo para uma família de dez pessoas, outros são pontos de tráfico e por aí vai.

Depois de suar bastante para entender o idioma alemão e me aprofundar nessa pesquisa, consegui entender a pergunta do meu eu de 16 anos. Sim, tem gente em todo canto deste planeta no mesmo perrengue que nóiz. Mas será que existem semelhanças entre uma favela e um Brennpunkt

Seja um Brennpunkt, seja uma cohab ou uma favela, historicamente o porquê do movimento do povo para as periferias é a desigualdade social. E essa desigualdade social é definida pela ausência. Nesse entendimento, um “ponto social queimado” é universal e definido pelo não-ser. A falta de perspectiva, a falta de estabilidade e a falta de educação. Uma possibilidade presente: a criminalidade. Um estado presente: a polícia.

Em alguns pontos das políticas públicas também há coisas em comum entre o Brasil e a Alemanha, guardadas as devidas proporções, é claro. Por exemplo, na Alemanha existe o programa Hartz IV, que tem o mesmo conceito do Bolsa Família, auxiliar pessoas a ter uma vida digna. A diferença? O programa alemão paga em torno de 400 euros (cerca de 2 mil reais) aos beneficiários, enquanto o programa brasileiro paga aproximadamente 190 reais por família. Ambos são fortemente criticados pela população.

Outro ponto em comum é a truculência policial com apoio do estado. Nos Brennpunkte são aplicadas políticas públicas como o kbO (kriminalitätsbelasteter Ort) (“local de criminalidade”), que permite que em certos pontos da cidade a polícia pare cidadãos e realize uma revista sem aviso prévio. Coisa que aconteceu comigo na estação de trem e resultou neste texto aqui. Ironicamente, o que aqui é considerado “truculência policial” no Brasil é procedimento padrão, ainda mais se você for preto e pobre.

Por fim, um ponto recorrente ao se referir às favelas e aos Brennpunkte é a estigmatização desses espaços, principalmente pelos moradores de outros bairros da cidade. Sempre definidos pelo caos, pela criminalidade e pelo desemprego.

Uma vez que o termo pode levar a uma maior estigmatização, assim como o movimento que acontece no Brasil com “favela x comunidade”, estão cada vez mais utilizados oficialmente termos como benachteiligtes Quartier, “bairro desfavorecido”, ou Stadtteil mit besonderem Entwicklungsbedarf, “bairro com necessidades especiais de desenvolvimento”.

Curiosamente, existe na Alemanha uma outra coisa que até se parece mais com as favelas, visualmente falando, mas socialmente é quase que o oposto. São os Kleingartenverein (associação de jardinagem). Pequenos barracos de madeira separados por cercas e com muito mato em volta. O que visualmente parece uma favela é a expressão mais pura de uma vida humana plena, o que, para muitos neste mundo, é um privilégio. São casinhas de jardinagem que ficam alocadas na periferia das cidades grandes. Locais feitos unicamente para que os alemães possam cultivar suas próprias flores, pois grande parte deles não tem um jardim em casa. #WhitePeopleProblems real oficial.

É indiferente se é na Alemanha, em Diadema ou em Marte. Onde o racismo, a exploração e o capitalismo estiverem presentes haverá segregação. A pobreza é um fator histórico-racial. Seja em um Brennpunkt, seja em uma favela ou em uma associação de jardinagem, o fato é: a desigualdade social é complexa e presente no mundo inteiro. As placas dos protestos Black Lives Matter disseram lindamente: “Ninguém é livre enquanto os outros são oprimidos”.

E o que essa lembrança cristalina me ensinou sobre minha nação? É que não haverá paz enquanto não houver reparação.

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Na imagem, há uma placa que compõe o projeto "Stolpersteine". Nessa placa, colocada entre pedras do asfalto, existem algumas informações gravadas em alemão: a expressão "aqui viveu", além do nome da vítima e data de nascimento, por exemplo.

Stolpersteine e a memória que fica

Alexandre Ribeiro debruça-se sobre o projeto do artista alemão Gunter Demnig e reflete sobre o processo de ressignificação de narrativas