por Naine Terena
Não, meu bem. Nosso corpo não é dócil. Ele é adocicado pelo bálsamo que nos besuntaram as nossas avós. Ele é regido pela energia dos encantamentos que acompanham o toque do maracá, os cantos cadenciados e a mistura de cores que trazem o urucum e o jenipapo no nosso corpo livre. Nosso corpo adocicado faz resistência no canto e na dança, durante as 24 horas/7 dias, enquanto o seu corpo dócil sonha com o dia do descanso.
O nosso corpo é adocicado pelo som dos esturros dos guerreiros, pela saudação lacrimosa das mulheres, pelo tempo que você não consegue (ou não quer) enxergar. Sua roupa de tecido fino não nos traz encantamento (nem inveja), porque é a sua voz que ouvimos atenciosamente e o seu olhar que nos revela sua essência (e já conhecemos e reconhecemos muitas vozes e olhos que carregam generosidade). Até porque a visão (e o corpo) de muitos de nós já foi mutilada pelas suas bombas ou devastada pelas suas doenças e comidas envenenadas que trouxeram pestes fatídicas. Muitos de nós não consegue enxergar na sua roupa, no seu carro ou no seu consumo o caminho da felicidade.
Suas instituições tentam nos seduzir e fazer nossos corpos dóceis. Alguns de nós podem acreditar nelas e no seu poder de sedução. Outros continuam a caminhar na toada da doce leveza “de ser” o que se é, com os pés no chão, ou nos chinelos e nas roupas (às vezes maltratadas), que não simbolizam nossa pobreza, mas, sim, nosso sossego material. Os panos, reaproveitados de outros panos, só cobrem nosso corpo dos seus olhos maledicentes, dóceis, disciplinados, reféns, obedientes. Crescemos às vezes questionando esses panos de barra de calça e quanto eles nos afastariam da sociedade composta de pessoas de bem. É da terra que vêm nossa comida e a sustentabilidade. Das minhas tias e primas feirantes, que passaram de geração em geração, muito mais do que vendendo, mas coletando histórias. Porque elas tecem de forma adocicada um sorriso reluzente para aqueles que se mostraram (ou não) amáveis a elas.
Não estamos disponíveis para a docilidade da sua economia, e muito menos para sua produtividade. Você se lembra de quanto em quanto tempo tenta esquadrinhar nossos corpos e fazer dele uma massa sem criticidade e ancestralidade? Parafraseando meu velho pai, os corpos adocicados cantam e dançam para viver, para morrer, para resistir, para ser feliz, para aguentar a tristeza, para fortalecer os elos que nos ligam a uma força que conduz os nossos dias.
O seu corpo esvaziado está tão desgastado da docilidade lhe imposta que o som do meu canto, o movimento do meu corpo, o chacoalhar do meu maracá lhe trazem a irritação, chamando-nos de preguiçosos e vagabundos, quando o nome disso é liberdade. O bater do nosso pé no chão entra no seu sonho querendo dizer: nossos corpos não são dóceis. São adocicados.