Escrevo muito nesta coluna sobre mulheres negras. Sobre o que elas fazem, produzem e pensam. As formas pelas quais resistem, constroem pontes, laços, mecanismos e ferramentas de diálogo em um mundo no qual, muitas vezes, suas vozes e palavras são desconsideradas. As redes de saber que as mulheres negras mobilizam e fomentam, as suas lutas pelo reconhecimento da sua própria humanidade, culminaram na escolha de uma data de celebração das conquistas e também de reivindicação pelos seus direitos: 25 de julho.

Em 25 de julho, celebra-se o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, o dia das amefricanas, aquelas mulheres da diáspora negra que se organizam para além das fronteiras territoriais e idiomáticas. Essa data marca um compromisso político de mulheres negras em constituir pontes e diálogos transnacionais – desde construções político-teóricas que percebem o colonialismo até a escravização de negros e a exploração de indígenas como marcos fundantes da modernidade. É importante também localizar que essa disposição na elaboração de uma solidariedade internacional negra e feminina se dá a partir da reivindicação do protagonismo político, de um compromisso em autorreconhecimento.

As lutas das mulheres negras da Améfrica Latina são arquivos necessários para a construção do conhecimento em uma perspectiva em que os silenciamentos do racismo epistêmico não sejam a tônica. A ação política e intelectual de mulheres negras tem a função de romper barreiras: propõe-se a transgressão, a afirmação de uma subjetividade que rejeita concepções essencialista sobre si. Parte de um compromisso radical com a nossa própria pluralidade. Não nos sujeitamos a uma concepção essencialista sobre o que significa ser uma mulher negra, a um único pensamento sobre o que as nossas lutas representam, porque apostamos no reconhecimento da nossa existência como sujeitas plurais.

O Julho das pretas nos proporciona retomar as raízes do movimento de mulheres negras e os seus propósitos, especialmente o compromisso revolucionário de propor uma perspectiva de justeza. Isso, aliás, aprendi recentemente na experiência potente do terreiro Ilê Axé Omiojuaro, que resguarda os legados de Mãe Beata de Yemanjá, uma das mais importantes feministas negras que já conheci. Uma mulher que empenhou esforços memoráveis contra o racismo e o sexismo.

Mulher com dreadlocks | foto: divulgação

Pensar no mês de julho a partir do arquivo de memórias das lutas de mulheres negras é pensar na Marcha de mulheres negras de 2015, no compromisso dessas mulheres com o bem viver. É reivindicar a agenda de mulheres negras a partir do que elas mesmas propuseram. É ancorar o debate a partir do reconhecimento da importância das tradições orais, do saber que se localiza na experiência de mulheres negras brasileiras, uruguaias, argentinas, bolivianas, dominicanas e de todos os países da América Latina e do Caribe.

Expressar os acúmulos de tantos Julhos das pretas que presenciamos é ainda reconhecer o lugar que o Brasil ocupa e trazer para o centro outras experiências, compreendendo o que temos de comum nas nossas resistências. Assim como acontece no Brasil, em Porto Rico, por exemplo, é comum que as feministas insistam em ignorar as complexidades que o racismo produz na sociedade, fazendo com que algumas mulheres acessem privilégios importantes, não apenas no campo econômico, mas até mesmo na construção das suas subjetividades.

As múltiplas opressões que são experienciadas pelas amefricanas não se esgotam em relação a gênero, identidade cultural e raça. Vão além: chegam a ponto de a omissão ou a ausência de literatura sobre as experiências dessas mulheres, por si só, se constituírem enquanto opressão – a chamada opressão epistêmica. O não reconhecimento das narrativas de mulheres negras  para a produção do conhecimento feminista é um processo passível de ser recuperado: trata-se  do que Claudia Pons Cardoso indica ao analisar “a contribuição histórica de sujeitos encobertos pelas narrativas tradicionais, como também [o favorecimento dos] preceitos das epistemologias feministas, em especial a crítica às noções de objetividade e neutralidade, que separam o sujeito do objeto de conhecimento, reivindicada pelas epistemologias tradicionais”.

A luta contra o racismo antinegro e contra o sexismo é uma agenda central neste mês. Nesse sentido, o modo pelo qual uma ideia de democracia racial informa a narrativa cultural de parte significativa dos países da América Latina e do Caribe é um modo de silenciamento. Um silêncio que acusa mulheres negras de divisionismo quando reivindicam espaços nos quais possam articular estratégias próprias para enfrentar as múltiplas opressões que as atingem.            

A estratégia de colocar julho como um mês dedicado a tematizar as múltiplas experiências vividas por mulheres negras permite evidenciar que as ideias e os conceitos migram, reconfiguram-se e se rearticulam a partir dos seus contextos. Inclusive, apontando que o que informa a luta feminista negra não necessariamente é a inscrição do seu pensamento em livros e artigos, mas, sim, a luta política. Mesmo que, em muitos casos, ocupemos espaços políticos de forma precária.          

Segundo Ana Maurine Lara, poeta lésbica dominicana, romancista e estudiosa feminista negra, a invisibilidade e as negociações que as mulheres negras precisam fazer para o reconhecimento das suas identidades são parte essencial da compreensão da complexidade das suas identidades. Recuperar os processos de resistência e a insurgência do feminismo afro-latino-americano, conforme nos alerta Lélia Gonzalez, continua sendo uma necessidade urgente.

Sejamos, então, capazes de desafiar o que está posto a partir do intercâmbio, do reconhecimento, da cumplicidade. Conspiremos pelo nosso bem viver.

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