por Luísa Pécora

 

A cineasta paulistana Thais Scabio tem um projeto e tanto para 2022: depois de duas décadas trabalhando no setor audiovisual, ela vai começar a produzir o primeiro longa-metragem de sua carreira. “Consegui chegar ao longa depois de 20 anos”, disse a diretora em entrevista via Zoom a esta coluna. “É muito tempo, né?”, completa.

Como Thais, muitas outras realizadoras negras enfrentaram e enfrentam um caminho mais longo para desenvolver seus projetos em um setor que reproduz o racismo institucional da sociedade brasileira. Na coluna do mês passado, citei um dado que infelizmente precisa ser repetido: ao analisar os 240 filmes nacionais de maior bilheteria entre 1995 e 2018, o Grupo de Estudo Multidisciplinar de Ação Afirmativa (Gemaa) chegou a um número impressionante de mulheres negras na direção ou no roteiro – zero.

Retrato da cineasta Thais Scabio, uma mulher negra, com cabelo cacheado e de cor castanho. Ela está com luzes. Está sorrindo para a foto, com uma mão apoiada no queixo.
A cineasta Thais Scabio, vice-presidente da APAN (imagem: Acervo Thais Scabio)

A ausência de dados oficiais que sejam compilados e divulgados com regularidade faz com que seja difícil avaliar se o cenário tem melhorado. Não há dúvida, porém, de que o público está interessado em conteúdos mais inclusivos e que a discussão sobre raça e gênero no cinema se fortaleceu nos últimos anos.

Isso não se deu da noite para o dia. Colaboraram, por exemplo, o movimento Dogma Feijoada, criado a partir de um manifesto escrito pelo cineasta Jeferson De em 2000; as exibições promovidas pelo Encontro de cinema negro Zózimo Bulbul, realizado há 14 anos no Rio de Janeiro; a atuação pessoal e profissional de cineastas negros de diferentes gerações; e discussões que tomaram as redes sociais de forma global, como a promovida pela hashtag #OscarsSoWhite, que cobrou reconhecimento aos atores negros na maior premiação cinematográfica de Hollywood.

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Outro momento importante foi a criação da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, mais conhecida como Apan, instituição que busca fomentar, valorizar e divulgar o cinema negro do Brasil. Fundada em 2016, a organização celebra seus primeiros cinco anos com várias iniciativas em atividade, incluindo a plataforma de streaming Todes Play e a plataforma de ensino a distância Apan EAD. Mais recentemente, criou o Fundo de Amparo a Profissionais do Audiovisual Negro (Fapan), que oferece apoio a trabalhadores e empresas afetadas financeiramente pela pandemia de covid-19.

Para saber mais sobre os primeiros cinco anos da Apan, e também sobre os projetos futuros, a coluna conversou com Thais Scabio, uma das fundadoras e hoje vice-presidente da associação. Ela assumiu o cargo em março, junto com o presidente Rodrigo Antônio, que substituiu Viviane Ferreira, agora à frente da Spcine.

Como você avalia esses primeiros cinco anos da Apan?

Quando começamos a pensar a Apan, a ideia era articular os profissionais negros. A gente via que todos [os grupos] tinham associações representativas, mas o audiovisual negro não estava nas discussões. Mesmo quando havia ação afirmativa em um edital, os realizadores e realizadoras negros não estavam discutindo junto. A gente não estava lá. Percebemos que, para entrar na discussão, precisávamos ter uma associação que nos representasse. Então a Apan surgiu assim, para articular e provocar. A gente ia para os festivais e perguntava: quantos jurados negros vocês têm? Quantas juradas mulheres? Quem fez a seleção? Quantas pessoas negras participaram? Nós também somos uma associação, por que não estamos na discussão?

Essas provocações trouxeram vários resultados positivos: hoje, vemos diversos festivais preocupados com a equidade de gênero e raça na curadoria, na seleção dos filmes, na composição do júri e das mesas de debate. Também conseguimos mais editais com ação afirmativa, tanto em São Paulo quanto na Ancine [Agência Nacional do Cinema]. A gente conseguiu provocar. E, conforme fomos provocando, fomos percebendo diferentes déficits no audiovisual e criando novos braços [de atuação].

O que vocês perceberam que estava faltando, por exemplo?

Percebemos que não havia um lugar para guardarmos a memória do nosso audiovisual. Formamos um catálogo com muitos filmes, mas não tínhamos um lugar [para distribuí-los]. A maioria da produção negra ia para o YouTube e se perdia por lá. Por causa disso, criamos a Todes Play, um lugar para organizar toda essa produção. Também percebemos que as pessoas precisavam de mais formação na área. A formação é cara, então criamos a Apan EAD. Além disso, muita gente começou a procurar a Apan para contratar profissionais negros. Para não virarmos uma agência de empregos, criamos a Raio [Rede Audiovisual de Inclusão Orquestrada], que faz essa ponte entre os profissionais e as produtoras e universidades. Estamos sempre criando novos braços para conseguir abraçar todas as necessidades. Acho que foi bastante coisa em cinco anos [risos].

Muitas das cineastas com quem converso dizem ter se sentido fortalecidas pessoal e profissionalmente ao se conectar com outras realizadoras negras por meio da Apan. Essa espécie de “encontro” também é um legado importante desses cinco anos?

Sim, muito importante. Uma das primeiras iniciativas que criamos foi o LAB Negras Narrativas, um laboratório para as pessoas construírem suas histórias. Foi um espaço de muita troca entre gente do Brasil inteiro. Até então, eu conhecia algumas pessoas negras de São Paulo. Foi pela Apan que fui conhecer [as cineastas] Everlane [Moraes], Viviane [Ferreira], Glenda [Nicácio], Edileuza [Penha de Souza], Adelia [Sampaio]. E aí uma vai dando conselho para a outra, lê o roteiro, ajuda em alguma coisa. Esse encontro é importante e cria uma força muito grande. Você vê que não está sozinha.

Fotografia mostra uma mesa composto por seis mulheres durante o debate sobre o filme Um Dia com Jerusa, de Viviane Ferreira, durante a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada em janeiro de 2020.
Debate sobre o filme Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira, durante a 23ª Mostra de cinema de Tiradentes, realizada em janeiro de 2020 (imagem: Netuno Lima/Universo Produção)

Você mencionou a criação da Todes Play, e nos últimos anos também surgiram outras plataformas com maior interesse no cinema brasileiro negro, incluindo a Afroflix, a Spcine Play e a Itaú Cultural Play. Ao mesmo tempo, ainda são poucos os longas-metragens dirigidos por mulheres negras que estreiam comercialmente. Na sua opinião, o espaço da sala de cinema ainda precisa ser ocupado ou o streaming já está cumprindo o papel de colocar o público em contato com os filmes de realizadoras negras?

Acho que existem as duas coisas. O streaming está fazendo um papel muito importante de organizar esse material, mas a gente ainda tem de conquistar a sala de cinema, porque é onde a Ancine e todo esse pessoal “conta”, né? A contagem está ali, no comercial. Nossos filmes rodavam muito mesmo antes do streaming, mas rodavam em cineclubes, escolas, espaços alternativos. A Ancine não conta essa circulação alternativa, então acho que temos, sim, de entrar na sala de cinema. Por causa dessa parte burocrática, e também porque a gente pensa os planos e a decupagem para a sala de cinema. A não ser que o filme seja pensado já para o streaming, há sensações que você não vai conseguir reproduzir [na tela de casa]. Acho que a gente ainda tem de valorizar essa diferença e a janela para a qual o filme está sendo feito.

Falando em “contagens” da Ancine, em 2015 a agência começou a levantar e divulgar dados sobre gênero no audiovisual. Um estudo chegou a incluir dados sobre raça, mas nos últimos anos esses levantamentos deixaram de ser divulgados. Qual é a importância de termos dados oficiais sobre raça e gênero no cinema brasileiro?

Esses dados indicam para onde está indo o dinheiro público. Quando as realizadoras negras não aparecem nos dados da Ancine, não significa que não estão produzindo. Estamos produzindo, mas não estamos tendo acesso ao dinheiro público. O dinheiro público está indo para os homens brancos de classe média-alta, e esse acúmulo [de financiamento nas mãos de um grupo] é bem grave. A gente precisa ter os dados para que o governo possa pensar em equidade de raça e gênero. Esses dados precisam ser sempre revistos, até para a gente poder brigar. Com os dados em mãos, não é só a Thais falando: é a possibilidade de provar que o dinheiro público não está chegando às mãos da mulher preta e da mulher indígena.

Fotografia de Joyce Pais, uma mulher negra, com cabelo curto e cacheado. Ela está em cima de um palco, na ocasião recebendo a menção honrosa do júri da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo pelo longa Chico Rei Entre Nós, em novembro de 2020.
Joyce Pais recebe a menção honrosa do júri da 44ª Mostra internacional de cinema em São Paulo pelo longa Chico Rei entre nós, em novembro de 2020 (imagem: Mario Miranda Filho/Agência Foto para a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

Nos últimos anos, a Apan atuou no contexto da pandemia e de um governo federal que não é sensível à causa da igualdade racial e que, de forma geral, não valoriza a cultura e o cinema brasileiro. Como manter-se atuante e avançando diante de um cenário tão pouco favorável?

A gente costuma dizer que para o cinema negro a verba já não chegava. Para a gente a verba nunca chegou. A própria pesquisa [da Ancine] só foi feita no final do governo da Dilma Rousseff, e depois veio este desgoverno e acabou com tudo. Aí nem a gente nem os outros ganharam verba, então foi meio que um “bem-vindos ao nosso mundo”. Com a pandemia e as várias situações dos últimos anos, nós da Apan ficamos salvando vidas, fizemos um papel social mesmo. A pandemia mostrou a precariedade do nosso trabalho, e as pessoas negras geralmente são as que estão em cargos menores. Os diretores e roteiristas ainda conseguiram continuar recebendo alguma coisa, mas o motorista, a pessoa que fazia comida para o set... Muitas dessas pessoas não conseguem nem provar que tinham trabalhado nos filmes. Elas não tinham registro, não tinham nota, só tinham um recibo. A maior parte dos auxílios [que surgiram após a pandemia] não chegou a esses profissionais.

Fora isso, bolsas de estudo deixaram de existir... Houve vários retrocessos. Então, nesses dois últimos anos a gente ficou salvando vidas mesmo, apagando incêndio, pensando em alimentar as pessoas. Agora é que estamos entrando novamente na discussão política. É sempre um recomeço, às vezes até cansa. Você tem de ficar falando: gente, vamos retomar aquilo? Vamos começar de novo?

Fotografia da diretora Glenda Nicácio e o ator Renan Mota no Festival do Rio, realizado em dezembro de 2018. Ela é uma mulher negra e está vestindo uma saia no tom rosa e uma blusa azul escura. Ele é um homem negro, de calça branca e camisa preta com detalhes em branco.
A diretora Glenda Nicácio e o ator Renan Mota apresentam o longa Ilha na 20ª edição do Festival do Rio, realizado em dezembro de 2018 (imagem: Rogerio Resende para o Festival do Rio)

Quais são os principais projetos da Apan para o futuro e quais questões você acha que devem ser prioridade na luta por igualdade racial no audiovisual brasileiro?

Uma das coisas que estão acontecendo é a exigência de maior número de profissionais negros nas produções. Isso também tem a ver com as plataformas de streaming: a Netflix, por exemplo, trouxe uma política de cotas, e o pessoal [das produtoras brasileiras] saiu correndo atrás de profissional. E aí a gente percebeu que não basta incluir as pessoas: também é preciso saber como tratá-las. Na Apan temos uma assessoria jurídica, e o que mais recebemos é acusação de racismo – da sala de roteiro à distribuição do filme. Para o ano que vem, estamos produzindo um manual antirracista de produção no set em parceria com a Maria Farinha Filmes. Porque não basta chamar para trabalhar se as piadas continuam, se os profissionais são ignorados, se vão falar com outra pessoa porque não acreditam que aquela mulher negra ali é quem está dirigindo. Essas coisas ofendem, então esta é uma das preocupações que estamos trazendo atualmente: a de que não é só a inclusão, é o tratamento também.

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