[Este texto integra uma série de relatos produzidos pela equipe de atendimento educativo do Itaú Cultural (IC). Nesses relatos, cada educador comenta sua experiência relacionada a uma exposição apresentada no IC, destacando três das obras presentes na mostra.]

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por Elissa Sanitá

“Há mais coisas entre a consciência e a loucura do que sonha nossa vã psicologia” – poderíamos adaptar dessa maneira a célebre frase, encontrada na obra shakespeariana Hamlet, para descrever o trabalho de Nise da Silveira e a abordagem feita na mostra Ocupação Nise da Silveira, que aconteceu entre o final de 2017 e o início de 2018 e gerou forte impacto em quem pôde visitá-la.

A arte sempre foi muito mais do que estética, e quem convive com ela diariamente percebe isso na prática. Mesmo quando não se tem familiaridade declarada com o mundo artístico, ele se mostra presente de alguma forma: quando nos sentimos mal ou queremos nos distrair, podemos desenhar, escrever, bordar, rabiscar, pintar ou realizar qualquer outro tipo de arte. Trata-se de um processo de catarse que transporta notícias do inconsciente para o suporte escolhido. É possível trabalhar com a própria arte para estabelecer um processo de recobramento, energização ou relaxamento.

Nise da Silveira carrega em sua figura uma relação muito mais estreita com as possibilidades artísticas do que se poderia esperar de uma médica psiquiatra. Sua história, permeada de pioneirismo, protagonismo feminino, inteligência e afeto, conjuga ciência e arte para estabelecer um processo de expressividade e cura.

Em uma época em que a mulher tinha muito menos voz do que hoje e na qual a medicina, sobretudo para tratar da mente, era agressiva e opressora (lembrando tratamentos considerados comuns como lobotomia, eletrochoque e coma insulínico), surge essa alagoana intrépida, uma das primeiras doutoras do Brasil, para revitalizar o país e iniciar o processo inédito de medicar também pela arte e pelo afeto, provando o potencial curativo das práticas manuais e do cuidado interpessoal.

Foto da turma de formandos da Universidade Federal da Bahia da qual Nise fez parte, 1926. Nise está no centro da segunda fileira. Dimensão: 50 cm de largura (imagem: Acervo Nise da Silveira – Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII))

Não faltaram preconceitos a ser enfrentados por Nise, e as dificuldade que se apresentaram para ela no exercício de seu ofício e no descrédito de seus estudos não a impediram de prosseguir e conquistar sua posição como profissional de respeito. Tampouco esses entraves a abalaram em sua missão de ajudar pessoas a recuperar a saúde mental e a qualidade de vida que haviam perdido.

Nise trabalhou no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em Engenho de Dentro (RJ), conquistando reconhecimento por seu trabalho, que descartava tratamentos violentos e negligentes, substituindo-os por terapia ocupacional. Ela também fundou o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), em 1952, na mesma cidade de sua atuação profissional.

O que Nise propunha eram atividades de prática artística e artesanal para tratar os pacientes – ou melhor, os clientes, como ela preferia se referir a eles, porque sua abordagem humanista não lhe permitia tratar como agentes passivos aqueles que eram confiados a seus cuidados.

Internos do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em Engenho de Dentro (RJ), em atividade de terapêutica ocupacional. Arquivo Nise da Silveira. Dimensão: 21 cm × 15 cm (imagem: Acervo Nise da Silveira – Sociedade dos Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente (SAMII))

Por meio de desenho, pintura, escultura e bordado, assim como pela companhia de animais, Nise podia acessar o inconsciente de seus clientes e analisar os símbolos expressos para encontrar a melhor forma de tratar dos distúrbios psicológicos e comportamentos que cada um manifestava.

Como uma mulher que trabalha com arte e educação, a imagem acima me remete, de certa forma, a meu próprio trabalho. As relações e os processos artísticos são o alicerce de minha profissão e, durante o período em que a Ocupação ficou aberta, tive o privilégio de trabalhar em um ateliê que ficou disponível para o público todos os dias. Pendurávamos as produções realizadas pelos visitantes em uma parede, como um grande mural, para ser apreciadas por quem quer que passasse por ali.

O ateliê me moldou com várias experiências e, como um bom e profundo mergulho artístico, saí transformada: o contato com cada visitante, ouvir suas histórias, seus desabafos, ver o que eles realizavam com os materiais disponíveis no espaço – tudo se transformou em uma janela para colecionar aprendizados e praticar o carinho, a escuta e a disponibilidade, em trocas valiosas e marcantes.

Imagens de mandalas, que tiveram papel de destaque nos estudos de Nise, estavam fortemente presentes na exposição, feitas por clientes da médica e disponibilizadas do arquivo do Museu de Imagens do Inconsciente.

Ateliê da Ocupação Nise da Silveira, que aconteceu no Itaú Cultural de novembro de 2017 a janeiro de 2018. (imagem: André Seiti/Itaú Cultural)

Muitos dos visitantes que recebemos no ateliê acabavam por reproduzir a imagem da mandala, sem saber que ela significa, para os estudos de simbologia e inconsciente coletivo, o início do processo de organização mental e, consequentemente, a longo prazo, a cura ou a ordenação do caos interno de cada um. Tantas vezes ouvi comentários de pessoas que chegavam carregadas e aborrecidas e que, ao fazer um desenho – não somente de mandalas –, viam seu dia se transformar!

Também não faltou o contato, no espaço expositivo ou no ateliê, com diversos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o que me colocou pela primeira vez ao lado de pessoas que vivenciam as conquistas do trabalho de Nise até hoje, todos os dias, e que me mostraram e ensinaram na prática a importância de tudo o que a doutora defendia, ultrapassando meus conhecimentos teóricos.

Vivenciar, ainda que em pequena medida, algo do projeto de trabalho de Nise é uma experiência grandiosa. Com tudo o que Nise era e com tudo o que ensinou, eu me senti bastante tocada: de mulher para mulher, de humanista para humanista, na valorização da arte como objeto de trabalho e, principalmente, como instrumento de transformação, seja social ou psicológica. Talvez agora eu possa fazer uma nova paráfrase e dizer que, sem sombra de dúvida, “de artista e de louco, todo mundo tem um pouco”.

Quem não se sentir contemplado que jogue a primeira tinta! E veja o que acontece.

Para conhecer mais sobre o trabalho da artista, clique aqui.

Sobre mim:

Meu nome é Elissa Sanitá, tenho 23 anos e sou educadora no Itaú Cultural há três anos. Sou formada em comunicação social e cinema e estou cursando especialização em história da arte e cultura visual. Minhas grandes paixões são ler, escrever, desenhar, tirar fotos e gravar vídeos.

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