Narrativas é a sétima série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um texto literário inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Veronica Stigger.

Planeta fóssil

Monólogo da água

Uma vez, disseram-me que, quando os tempos chegarem ao fim, toda a magia de existir se concentrará num único peito de mulher e, deste peito, sairá um grande grito: uma única e isolada voz que então deixará de ser humana para se tornar uma caixa de ressonância e desespero. Esse grito ecoará por toda a Terra por dias e dias – assustando os animais, agitando as plantas, despertando os vulcões adormecidos – até que o peito de onde partiu não tenha mais forças para emitir qualquer som e, de súbito, emudeça. Quando isso acontecer e nenhum outro ruído se ouvir no planeta a não ser aqueles das folhas ao vento, do fogo consumindo os mais diversos materiais, dos rios que correm, das ondas que batem nas pedras, do gelo que derrete sobre o solo, das correntes de ar que uivam nas frestas, saberei que é chegado o instante por mim tão esperado e para o qual me preparei desde que me foi dada existência. As águas se elevarão todas ao mesmo tempo, aos poucos, sem alarde. Brotarão de todos os bueiros e dos ralos de todas as casas, inundando-as paulatinamente. As marés subirão e se alastrarão pelas costas, submergindo-as. Ondas de trinta metros de altura se formarão. As cidades litorâneas serão as primeiras a desaparecer depois de Veneza, que afundará logo ao final da primeira semana. As águas continuarão subindo até cobrir e apagar os vulcões despertos pelo último grito humano. Em um ano, não haverá mais nada, apenas água: água por toda parte. Estarei gestando enfim um planeta cadáver.

Monólogo do fogo

Ninguém dorme. Ninguém dorme. Não há mais ninguém para dormir. Ninguém para controlar o fogo que arde dentro desta caverna. A fumaça se espalha por cima da água, e as cinzas se imprimem nas paredes de pedra. Quisera eu ser pedra para vestir um belo casaco de limo. Pedra. Pedra. Quem sabe não viro uma pedra depois do grande grito. Ontem, julguei ter ouvido o choro de um bebê recém-nascido. Seu corpo era de barro e sua pele tão fina que não resistiria por muito tempo em contato direto e prolongado com o chão duro sobre o qual estava deitado. Era dia, e não havia bebê algum. Nem choro. Ninguém chora. Ninguém chora. Não há mais ninguém para chorar. Ninguém para recolher as pequenas folhas que se depositam sobre a água que corre. Agora, é noite e ela pede silêncio. Tento me calar, mas não consigo. Minha natureza não me permite. Estalo involuntariamente e não sou nem mesmo capaz de controlar o ritmo dos estalos. A água também não se cala. Nem o gelo, que derrete e pinga com o calor que faz aqui. Só o carvão está quieto. Invejo sua mudez e paralisia. Já não deita chamas. Já não chora. Talvez durma. Como os homens, ele sonha com a morte. Ah, meu querido carvão, meu filho bastardo, quisera eu ter sido feito à sua imagem e semelhança! De onde estou, diante da boca de entrada desta caverna, só me resta lamentar e olhar as estrelas, que piscam para mim. Será um aceno? Um sinal? Uma fala? Teriam as estrelas uma linguagem própria, como os vulcões? Elas também são fogo, mas não as compreendo. Talvez cantem. Eu daria tudo para escutar sua música. Entregaria, na loja de penhores, meu lança-chamas. Largaria o cigarro. Abandonaria o charuto. Falta pouco para que venha o dia. Despeça-se, noite! Ponham-se, estrelas! E que a luz resplandeça! Que Alba nos ilumine e proteja.

Monólogo do gelo

É preciso extinguir o fogo.
É preciso cessar o calor.

Que ventos polares se levantem
e tragam consigo o dilúvio.

A morte do gelo
é tornar-se água.

Monólogo do carvão

O mundo estava completamente devastado. Só restava intacta a caverna no alto do morro de onde, como deuses, contemplávamos a destruição. Era nosso Ararat, e era nosso Olimpo. Abaixo de nós, nada mais se mantinha íntegro. Os outros morros haviam desmoronado, como se potentes e inúmeros explosivos tivessem sido disparados simultaneamente em seus interiores. Os prédios haviam desabado. As ruas, sobre as quais se precipitaram as pesadas ruínas, estavam esburacadas. Em alguns pontos, grandes valas se abriram e, de dentro delas, emanava um gás fétido e ardente. Rachaduras no solo trincavam as estradas. Os carros foram esmagados pelos escombros das construções e dos morros. Seus restos metálicos e seus vidros partidos em mil pedacinhos se integraram ao solo, compondo um mosaico. Havia por toda parte restos de papeis, de plásticos, de comida e de todos os líquidos imagináveis. Havia também fragmentos de tecidos orgânicos tão pequenos que ninguém poderia determinar a procedência: se humanos, animais, vegetais. As árvores haviam sido todas postas abaixo. Seus galhos estavam pelados, e as poucas folhas que se achavam pelo chão, secas. Não havia mais verde. Não havia mais nenhuma cor, a não ser o vermelho das chamas que brotavam em inúmeros pontos, como fogueiras de São João. O mundo tornara-se cinza e terra. As pessoas entravam em combustão espontânea. Muitas delas explodiam logo que pegavam fogo, e seus pedaços carbonizados eram lançados a metros de distância. Mas nem todas se consumiam: aos poucos, ficou evidente que só se incendiavam aquelas que tinham desejo. As pessoas sem desejo seguiam ilesas e finalmente tinham para si um mundo no qual se reconheciam.

Veja também:
>> 
Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural
 

Veronica Stigger é escritora, crítica de arte e professora. É autora de Onde a onça bebe água (2015), Nenhum nome é verdade (2016) e Os anões (2010), entre outros. Acompanhe sua entrevista à série Cada voz.

Thiago Rocha Pitta é artista visual, tendo trabalhado com pintura, escultura, fotografia, vídeo e instalação. Veja depoimentos seus nas entrevistas da exposição Filmes e vídeos de artistas na Coleção Itaú, realizada em 2016, e acesse o verbete dedicado à sua obra na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.

Veja também