Cidades destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Leone Righini
Vista Panorâmica da Baía de Belém, 1870
óleo sobre tela
55 x 164,5 x 3 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

Por Duanne Ribeiro

Quem diria que uma imagem assim tranquila é tão imersa em tensões... Vemos Belém de longe, as embarcações parecem ociosas, o sol tinge as águas com um pálido laranja. A data da pintura – 1870 – é longínqua o suficiente para que seus conflitos nos sejam desconhecidos; a maneira pela qual essa cena poderia ser recebida à época não nos toca, para nós é só um panorama bonito ou curioso. Mas tudo indica que seu autor, Leone Righini (1820-1884), não registrou apenas um belo amanhecer ou pôr-do-sol. Essa sua tela é, digamos, forçando um pouco, engajada.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Nascido em Turim, na Itália, Leone veio ao Brasil com cerca de 35 anos, como cenógrafo da José Ramonda, companhia de ópera italiana. Passou por Salvador (BA), pelo Rio de Janeiro (RJ) e por São Luís (MA), estabelecendo-se enfim em Belém (PA). Sua atuação pode ser inscrita na dos artistas viajantes – estrangeiros que, desde 1500, pintaram ou desenharam o país. Leone seria, nesse sentido, um viajante “tardio”. O curador Pedro Corrêa do Lago o define como “o melhor pintor estrangeiro a retratar a paisagem amazônica no século XIX” e “um dos primeiros (senão o primeiro) entre os artistas estrangeiros a pintar a paisagem das regiões do Norte do Brasil”.

Segundo a Brasiliana Iconográfica, a “contemplação da paisagem é uma das características mais marcantes da sua obra”. Nele, essa prática é enriquecida por sua experiência em cenografia: as suas paisagens têm “recursos dramáticos” ou, como elabora Vera Beatriz Siqueira,

são como cenários para uma ação que lhe é exterior. Ao contrário da maioria dos artistas viajantes, Righini não coloca no interior da pintura um espectador guia para a nossa percepção. Inanimadas, imóveis, horizontais e iluminadas pela frente, elas poderiam perfeitamente ser panos de fundo para uma ópera ou apresentação teatral.

Qual dramaturgia se desdobra nessa Vista Panorâmica da Baía de Belém que observamos aqui? As respostas a essa provocação podem variar. Uma delas se refere ao fundo social dessas obras. Tanto as imagens paraenses de Leone – que incluem Casas de Índios na Floresta Mata-Mata no Mojo (1867) e as litografias (conheça a técnica) de Panorama do Pará em Doze Vistas ­– quanto seus trabalhos sobre outros locais – como Sítio Sossego, São Luís, Maranhão (1865) – são parte do seu tempo. Suas decisões estéticas, portanto, dialogam com interesses de então.

Diz Francivaldo Alves Nunes, “os propósitos políticos destes registros representam em muitos momentos a defesa de projetos para a região”, incluindo “a descrição da natureza equatorial [...] como estimulador à introdução de imigrantes”. Nos seus trabalhos há uma efervescência:

Righini viveu, experimentou e produziu visualmente esse debate, com obras nas quais os críticos do passado e do presente observaram a destreza do artista em articular áreas de luz e sombra, [mas que] muito além disso fazem parte de um imenso debate político sobre o processo de ocupação, colonização e uso das florestas na Amazônia do século XIX, no qual a pintura teria sido um dos eloquentes testemunhos.

No momento em que Leone retrata Belém, a cidade passa por intensas modificações. Informam Rogério Guimarães Malheiros e Genylton Odilon Rêdo da Rocha, a capital paraense, a partir da década de 1840, se moderniza, com melhoras na estrutura urbana, procura de um ideal europeu e fortalecimento das contradições sociais. Nesse período também se estabelece a navegação a vapor e o porto de Belém se torna um entreposto comercial decisivo na região. Righini observa uma baía que de 1840 a 1880 viu sua ocupação crescer de “78 [...] para 292 embarcações”.

Dessa forma, esse horizonte de moradias azuis, rosa, verdes, cumeado pela igreja, tão plácido, é na verdade vibrante: a cidade está em movimento, convoluto e amplo como as nuvens escuras que cobrem o céu de Righini. E, ao perceber isso, essa Vista Panorâmica da Baía de Belém pode ser outra coisa além de bonita ou curiosa – pode falar sobre o nosso presente. Pois as questões que os pesquisadores citados mostram na Belém de outrora ­­– interessada em ser civilizada, com certas noções do que devem ser sociedade e natureza – também estão em jogo hoje em dia.

Joseph Léon Righini, ou Leone Righini, foi pintor, desenhista, gravador, fotógrafo, cenógrafo e professor. Estudou na Academia de Belas Artes de Turim, tendo sido aluno de Lorenzo Pécheux, também pintor. Só a partir de 1994 sua obra passou a ser mais conhecida, com quadros antes de difícil acesso sendo colocados em exposição. Em 2000, a Mostra do Redescobrimento: o Olhar Distante, da Fundação Bienal de São Paulo, exibiu uma inédita reunião de suas telas no Brasil. A Brasiliana Iconográfica também partiu do seu trabalho para discutir um tema contemporâneo: o desmatamento, intensificado nos últimos tempos, da Amazônia. Veja a matéria.

Veja também