Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Nazareth Pacheco
Sem título, 1997
miçangas e lâminas de lancetar
22 x 16 x 14 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Sérgio Guerini/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Alerta à primeira vista: ao passo que podemos achar esse colar bonito, sabemos que é perigoso. Se imaginarmos usá-lo, o incômodo pode ser crescente: as miçangas pretas e peroladas pendem da nuca inofensivas, mas as lâminas tocam o tecido da roupa ou a pele nua com risco potencial. A lembrança de algum corte e o sentimento de autoproteção dão um acento particular a esta obra de Nazareth Pacheco, artista que já definiu a arte como "um local a se proteger, entre o medo e o prazer". Nesse entremeio do que assusta e do que agrada, encontramos o quê?

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Nazareth encontra aí memória e metáfora. Memória porque a tensão representada pelo trabalho remete à relação da artista consigo. Nascida com uma condição chamada síndrome da banda amniótica, ela se submeteu a várias intervenções cirúrgicas, segundo conta, para "correção do lábio leporino, transplante de córnea, cirurgia nas mãos, pés, nariz e boca". Depois dessa fase, passou a procedimentos estéticos, "tratamento de pelo no rosto, aparelho dos dentes, depilação, limpeza de pele, entre outros". Essa vivência da própria identidade foi convertida em obra artística:

Chegou um momento em minha vida em que a questão do modelo ideal de beleza passou a ter um peso grande e foi por meio desta questão que, trabalhando com esses dados, a minha experiência de vida foi “transformada” em arte, mas com uma grande preocupação formal e estética ao realizar os chamados “objetos de arte”.

Os objetos de arte – neste ponto, alargamos um pouco os limites da série em que este texto se inclui, Esculturas. Na produção de Nazareth, não se trata tanto de moldar a matéria, mas, sim, de se apropriar e ressignificar elementos que podem ser cotidianos (para saber mais sobre a história dessa prática em artes visuais, leia este texto do artista Ricardo Cristófaro). Com tal recurso, ela mobiliza sentimentos e lembranças. Por exemplo, em obras como a de que falamos,

os materiais cortantes e de perfuração escolhidos para confecção desses objetos estavam diretamente ligados a objetos que sempre me causaram medo e pânico: agulhas, lâminas etc., as quais sempre eram utilizadas nas cirurgias às quais me submeti. Mas, por outro lado, utilizo cristais, pérolas, materiais esses extremamente sedutores, que se tornaram desejados através de suas formas e brilhos. Ao desejar alcançar o belo, tenho que me submeter a cortes e perfurações.

Essa última frase já nos leva à metáfora, o tema é menos pessoal e mais universal: como vemos a nós mesmos? Que custo pagaríamos, o que aceitaríamos sofrer, para sermos transformados? Dos aparelhos de barbear e da cera de depilação aos treinos esportivos (que podem, aliás, ter o lema no pain, no gain), das normas de gênero aos tratamentos corporais estéticos, tomamos ou somos levados a tomar uma série de decisões nesse sentido que envolvem aqueles medo e prazer.

As mulheres, note-se, têm uma experiência particular de toda essa questão, o que está patente na obra de Nazareth. Além do nosso colar, ela produziu outras vestimentas (ou antivestimentas) que compõem o universo feminino, como um vestido e uma saia de giletes e cristais ou um sutiã com lâminas de bisturi (veja imagens da Galeria Murilo Castro). Nesse contexto, essa problemática pode ser discutida tendo em vista um livro como O Mito da Beleza, de Naomi Wolf, que discorre sobre como a ideia de "alcançar o belo" pode ser manipulada para oprimir e segregar, e defende a superação disso, afirmando a vontade da mulher (leia um artigo sobre o livro e o tema).

Ainda mais, como expõe Nazareth no documentário Gilete Azul, de Miriam Chnaiderman, esses seus objetos implicam outro jogo binário, agora entre limitação e anseio: dando como exemplo o balanço de cristal e acrílico com agulhas no banco, ela comenta que há nele um convite ao prazer, uma reminiscência da infância – e a evidência de uma impossibilidade. Eis um novo entremeio. O que encontramos aí? Certo saber de paradoxo, nosso ponto de partida.

Nazareth Pacheco é artista visual. Trabalha primeiramente com peças em borracha que exibem um viés agressivo e uma "estranha semelhança com objetos de tortura", como propõe Tadeu Chiarelli, crítico de arte. No início dos anos 1990, cria os Objetos Aprisionados, que reúnem fotos, radiografias, relatórios e outros itens de uma autobiografia – a passagem da artista pelos fazeres médicos. No fim da década, passa a trabalhar com metal e cristal e a produzir obras como essas que observamos no texto acima. Confira outras duas boas entrevistas com ela: à Galeria Kogan Amaro e à TV Brasil. Veja outros dados na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras

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