Artistas negros | Perguntar ao passado a razão da violência do presente: a pemba de Jaime Lauriano
15/04/2021 - 18:50
Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Jaime Lauriano
Novus Brasilia typus: invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, 2016
desenho feito com pemba branca e lápis dermatográfico sobre algodão preto
116 x 151 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Arquivo do artista/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Você está no Brasil, no ponto central de um panorama. Ao Norte, você avista a democracia racial; ao Sul, o etnocídio. Além da costa, o que vem pelas águas são invasão e apropriação cultural. Tais marcos deixam claro: este não é um território inofensivo. Quem consegue respirar neste lugar?
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Nos vários mapas da série Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural – de que a obra Novus Brasilia typus, acima, faz parte –, as posições desses quatro fatores podem variar, mas sua presença como evidências de sintomas e causas do racismo à brasileira está sempre lá. Além da obra citada, o conjunto conta com Amazônia atlântica, Accuratissima Brasilia tabula, Brasil, Meridionalis Americae e Terra brasilis (veja todas), peças criadas a partir de documentos históricos. Com elas, Jaime Lauriano indica a barbárie decorrente das Grandes Navegacões.
Por exemplo, Novus Brasilia typus – “nova imagem do Brasil”, em latim – é o nome de um mapa feito pelo cartógrafo holandês Willem Blaeu (1571-1638) por volta de 1631. Deste trabalho, Jaime extrai o contorno do continente, seu posicionamento na imagem, mas já pelo material utilizado na sua versão causa grandes deslocamentos de sentido: para fazer os desenhos, recorreu a um giz de calcário típico dos rituais de umbanda, a pemba – com isso, é como se o olhar europeu e colonizador fosse deixado de lado, em prol do saber ancestral dessa religião afro-brasileira.
Se o filósofo Walter Benjamin defende “escovar a história a contrapelo” – ou seja, recuperar nela as vozes de quem foi calado e submetido –, Jaime vai além: redesenha a história com pemba branca. Blaeu espalhou no território árvores, animais, indígenas e moradias; na releitura do artista, as casinhas e as redes estão solitárias, a vida foi extinta... Ainda mais, as informações geográficas e alguns detalhes da arte foram apagados – as figuras ficaram isoladas até, em um espaço mais vazio – e tudo se expôs branco no preto, como em negativo. Diz Jaime:
A harmonia encontrada, e exaltada, nos originais é perturbada pela inscrição dos termos “invasão”, “etnocídio”, “democracia racial” e “apropriação cultural”, retirados de livros que pautam a construção da História do Brasil. Tal operação reforça a violência presente nas ilustrações, e na “invenção do continente americano”.
Trata-se, assim, de dispor questões de origem: como a América foi inventada? Como o Brasil foi inventado? Na medida em que, como nota Jaime, “a história não é linear, é um ir e vir de dados, traumas e violências”, responder a essas perguntas demanda entender como o passado está no presente e como o presente ressignifica o passado. As palavras inscritas nos mapas pelo artista agem nesse sentido: vindas de uma crítica contemporânea, falam do que foi e do que está sendo.
Vejamos cada ponto: “invasão” problematiza a noção de que o continente foi descoberto, termo que induz a imaginar que territórios ocupados pelos povos originários eram vazios, de ninguém (como recorda o filósofo Ailton Krenak no primeiro episódio da série Guerras do Brasil.doc, “tinha gente aqui, alguns desses povos com uma história de 2 mil anos”); “etnocídio” designa dados como o seguinte: de estimados 3 milhões de indígenas em 1500, em 1650 – pouco após Novus Brasilia typus ser feito – já eram 700 mil, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Democracia racial”, por sua vez, é a ideia de que no Brasil conflitos étnicos inexistem, são mais amenos que em outros locais ou são secundários na medida em que a miscigenação caracteriza o país. Desenvolvida, entre outros, pelo sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), essa perspectiva tem sido criticada por invisibilizar processos históricos marcados por violência e exclusão social (leia, sobre isso, este texto de Abdias Nascimento, homenageado da Ocupação, em que ele fala também de etnocídio – desta vez, das populações negras). Enfim, “apropriação cultural” denota situações em que saberes e meios de expressão artística de uma etnia – ela mesma em condição de desvalorização – são usados por outros grupos, tendo então valor. Questão de defasagem.
Todos esses temas estavam no passado e permanecem no presente. E, se é a partir de um ponto de vista atual e mais informado que reavaliamos o que foi, podemos – e é Jaime quem ensina – “perguntar para o passado por que é que as coisas acontecem hoje em dia”. Essa prática parece ser crucial para todo o trabalho do artista. Com ela em vista, um questionamento que ele fez, de acordo com a Arte brasileiros, é: “Por que se matam tantos jovens negros?”. De fato – a Folha, nessa direção, noticiou – a partir de estatísticas de 2017 divulgadas em 2019 – que “homicídios entre jovens negros são quase três vezes maiores do que brancos”. Passado, diga: por quê?
Jaime Lauriano é artista visual e arte-educador, graduado pelo Centro Universitário Belas Artes em artes visuais. Realizou exposições individuais e participou de coletivas no Brasil e no exterior. Sua temática central, que se desdobra em vídeos, objetos ressignificados, instalações etc. – são “as estruturas de poder contidas na produção da História”. Jaime afirma que arte e educação se misturam em sua atuação, e que busca, nos seus trabalhos, um didatismo. Também essencial é sua vivência de homem negro, que lhe define tomadas de posição como artista e educador. Saiba mais sobre o artista em seu depoimento à série Diálogos ausentes, do Itaú Cultural.