Artistas negros | Nossas duas cabeças e a comida dos deuses: a ebó-arte de Ayrson Heráclito
11/03/2021 - 17:38
Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Ayrson Heráclito
Bori cabeça de Ogum, bori cabeça de Omolú, bori cabeça de Nanã e bori cabeça de Yansã, da série Bori, 2009
impressão fotográfica sobre papel de algodão
100 x 100 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Arquivo do artista/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
O que têm em comum o inhame, a pipoca, o feijão-preto, o milho branco, o piruá (aqueles milhos de pipoca que não estouram) e o acarajé? São todos comidas prediletas de divindades. A pipoca é do gosto de Omolú, orixá relacionado à cura; o inhame agrada a Ogum, mestre do metal e da guerra; feijão, milho e piruá são adequados para Nanã, senhora da criação do mundo e da morte; por fim, o acarajé cai bem à Iansã, rainha dos ventos e dos raios. Nas fotografias acima, Ayrson Heráclito, artista visual, tornou manifesta essa conjunção entres os deuses e seus alimentos.
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A série Bori, de que essas quatro imagens fazem parte, conta ainda com várias outras figurações de orixás. Vemos Xangô, senhor da justiça, adornado de quiabos; Oxóssi, grande caçador, entre grãos de milho amarelo; Iemanjá, dona das águas, envolvida em arroz e fava. Encontramos Oxalá e o milho branco, Ossain e o xerém de milho com fumo, Oxumaré e a batata-doce – entre outros. Bori vem de bó, oferenda, e ori, cabeça, em iorubá; é um ritual fundamental do candomblé.
Para essa religião, ori designa nossa individualidade e capacidade de discernimento – é um orixá pessoal, respectivo a cada um de nós. O termo une significados em dois planos de existência: é o que temos sobre o pescoço, cabeça material (ori-aiye), assim como cabeça espiritual (ori-orun). Por meio do bori, alimentamos nossa cabeça, fortalecendo-a e tornando-a apta para receber a energia dos orixás do panteão – após a iniciação, o fiel será acompanhado por um deles.
A obra de Ayrson não representa propriamente um bori, que pode ser feito de maneiras diferentes – envolvendo a aplicação de líquidos e víveres sobre o corpo – e tem detalhes reservados apenas aos iniciados. De fato, o artista define suas criações como ebó-arte, referindo-se aos ebós, oferendas de rito específico para cada deidade e realizadas por motivos variados. A antropóloga Miriam Rabelo, em artigo no qual também narra um bori, descreve assim esses outros rituais:
No ebó a comida não é consumida, é passada e derramada nos participantes. Os grãos caem, o ajebó e o ovo quebrado escorrem, porções ficam retidas nos cabelos. A comida não é destinada a uma parte do corpo, é feita percorrer toda sua extensão. Neste percurso, é a comida (e não o corpo) quem age – absorvendo as energias negativas nele retidas. Talvez seja melhor dizer que corpo e comida se misturam (as fronteiras entre eles são temporariamente afrouxadas).
É só nas festas públicas dos terreiros – ainda segundo Miriam – que as comidas dos orixás são consumidas, por membros do culto e por visitantes. Sem romper os segredos do sagrado, Ayrson se inspira em todos esses símbolos: os ícones cabeça e oferenda dão a forma da série Bori, que sempre retrata os fotografados acima do peito, com o rosto delineado pelos materiais. De ambos os rituais ele empresta essa qualidade física e metafísica, segundo a qual humano e alimento se misturam num só fluxo e se comunicam o carnal e o espiritual. No candomblé, diz Miriam,
[a] comida vincula borrando fronteiras, instituindo reversibilidade entre dentro e fora, humano e orixá, cabeça e corpo. A ética que ela implica é menos da ordem da conexão entre seres já constituídos do que da transformação e do fluxo. Remete ao vínculo entre seres que se constituem juntos através de processos que em grande medida escapam ao seu controle. O comprometimento e a responsabilidade que este vínculo produz são menos da ordem do acordo do que da cumplicidade e participação.
Nesse trecho, como em outras partes de seu texto, ela destaca mais um aspecto importante do uso de iguarias nos costumes dessa religião: a sociabilidade. Isso inclui o desvelo de si e dos outros no terreiro, a atenção às durações variadas de cada fase das refeições de deuses e homens (do preparo à colocação na mesa), a entrega, o trabalho, o saber compartilhar. A série Bori teve essa faceta desdobrada na oficina Comida sagrada, em que Ayrson explicou temas que abordamos e ainda outros, falou de obras suas e guiou a feitura de alguns pratos cerimoniais.
“Dar comida para a cabeça é nutrir a nossa alma”, explicou o artista em outro lugar. As figuras da série Bori ensinam sobre um cuidado duplo – com aquilo que é mais subjetivo e com os laços que mantêm os grupos em que nos integramos. Ensinam, por meio da comida, que é o encontro entre as dádivas da natureza e as sofisticações do empenho humano o que nos sustenta.
Ayrson Heráclito é artista visual e professor, doutor em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), leciona artes visuais. Sua obra artística inclui fotografia, vídeo e performance, e debate, segundo um editorial da SP-Arte, a relação entre “o corpo e a história” – com efeito, os corpos negros, maculados pela escravidão – e “o lugar do sagrado na atualidade”. Saiba mais sobre a sua produção na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.