A história de amor e arte de Orlando e Conceição Senna vira filme
25/09/2018 - 12:40
por Heloísa Iaconis
No ônibus, uma moça e um rapaz se conhecem e, com frequência, se encontram. Até que, um dia, os rápidos esbarrões cessam: a garota não aparece mais. Sumiu, sumiu justo a dama que disputava com o homem o pagamento da passagem. Para ele, ela desapareceu. Veio um ano de eclipse, que, assim como começou, terminou: de repente, quando o jovem gravava cenas de figurantes, a mulher surge – bem no foco, a volta daquela que o encantou no transporte coletivo. O amor estava ali, dentro da câmera, nas filmagens de Festa (1961). Eis o início do elo entre Orlando e Conceição Senna, que continua ainda hoje e carrega, fora o afeto, o enredo do cinema brasileiro e, de modo mais amplo, latino-americano. A trajetória de ambos ganha, no presente, protagonismo na iniciativa das diretoras Lara Belov e Jamille Fortunato: no projeto contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural, essa história de amor e arte alcança o próprio fazer fílmico – ali, inclusa na tela, dá origem a O Amor Dentro da Câmera.
Orlando foi parceiro de Glauber Rocha e amigo de Jorge Amado e Gabriel García Márquez, comandou a obra Iracema – uma Transa Amazônica (1974), junto com Jorge Bodanzky, ajudou a implantar e coordenou a Escuela Internacional de Cine y TV – San Antonio de Los Baños, em Cuba, e cobriu, no posto de jornalista, o governo de Salvador Allende, no Chile. Conceição atuou em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), lecionou na Escola Cubana e dirigiu Memória do Sangue (1988), documentário sobre Canudos.
Tamanha bagagem chegou a Lara e Jamille a partir de uma oficina. Recém-saídas da adolescência, foram alunas do cineasta em Lençóis, na Bahia. A primeira cursava cinema; a segunda, estudante de jornalismo, mudou, então, de rota. “Nós nos identificamos muito com o estilo de Orlando, essa paixão pelas telonas. Fomos apresentadas a Conceição na oficina também e nos fascinamos, imediatamente, por ela”, recorda Jamille.
Da reunião inaugural erguem-se uma amizade e o anseio, maturado com o tempo e a convivência, de revelar, para além do círculo cinematográfico, a trama dos cônjuges. As duas aprendizes cresceram, compartilharam experiências, fundaram, junto com Cecilia Amado, em 2012, a produtora Tenda dos Milagres e colecionaram andanças, todavia nunca estrangularam a vontade de contar a união dos mestres queridos.
O querer, agora, alcança corpo em uma concepção de documentário de ensaio, intimista. “O centro do trabalho não é factual: passa por acontecimentos, mas há improviso, poesia, sonho – elementos que, ligados, criam a narrativa”, esclarece Lara. Em razão da impossibilidade de percorrer os países todos por onde Orlando e Conceição andaram, tomou-se uma decisão: a residência dos artistas, espaço familiar às condutoras do plano, é a locação-base do filme. Lara completa os porquês da opção pelo ambiente doméstico: “Da casa, faremos uma síntese (premissa do cinema). Utilizaremos linguagens mescladas e um rico material de arquivo para retratarmos a história de um amor insistente, que tem os seus mistérios, que dura meio século. Um amor teimoso, porque sobrevive (e sobreviver é uma teimosia) com desejo, tesão, carinho”. O propósito é, mediante um jogo dos vários tempos que uma pessoa abriga não cronologicamente, altear a metáfora do universo das películas, do universo das paixões.
E da política, visto que o casal octogenário ultrapassou, por exemplo, a ditadura militar e o esvaziamento do caráter latino no Brasil. Em Orlando e Conceição, a potência das línguas românicas irmãs sempre pulsou, nômades que foram pelo continente inteiro, pertencentes a uma região maior, ao ofício e um ao outro. Por tantos motivos, a crença no desígnio transposto para as lentes é enorme: “Tenho fé nesse projeto, nesse percurso que, antes mesmo de ter título, eu já apreciava”, garante Lara. Por sua vez, Jamille confessa que tenta manter a calma diante do desafio. Contudo, o resultado da seleção do Rumos confirmou que o caminho é frutífero: “Não é um edital fácil, a concorrência é grande. Por isso, a escolha é uma constatação de que o documentário é relevante e de que precisamos aproveitar a memória viva deles”, avalia. Memória que é também de um povo, de vários povos. E de amores: pela câmera, pela moça no foco, pelo rapaz do ônibus.