por Duanne Oliveira Ribeiro

 

Drácula – e os vampiros de uma forma geral – é uma figura mítica com presença intensa no nosso imaginário. Filmes, livros, quadrinhos, jogos têm reelaborado essas criaturas ao longo de séculos, e diferentes culturas interpretaram a lenda ou produziram crenças similares. Um dos projetos selecionados pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016 traz ainda outra – e original – perspectiva sobre esses personagens.

Realizado pelo Coletivo Soul, com direção-geral de Thiago Arrais, Undead: Desmortais do Inominável põe em cena Dracula or the Undead: a Play in a Prologue and Five Acts, peça do escritor irlandês Bram Stoker. Conhecido pelo romance Dracula (1897), Stoker nunca encenou esse texto dramatúrgico, que só foi publicado em livro cem anos depois de ter sido produzido – e é inédito no Brasil.

A ideia surgiu em uma residência artística de que Arrais participou na cidade de Fortaleza (CE) em 2015. Parte do projeto Criadores em Cena, a residência objetivava a criação autoral, e Arrais quis procurar um “teatro da sombra, do mistério, da ausência”. Recorreu então a Drácula e ao conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, que lida com a morte. O propósito seguiria germinando até a proposição de Undead.

Arrais considera que “Drácula interessa justamente pelo que não conheço, pelo que não sei e pela relação que posso estabelecer com a ignorância, que, claro, traz em si a sua própria revelação”. Ainda mais, a obra de Stoker teria necessidade de uma leitura renovada. “Drácula parece-nos uma obra geralmente mal lida, subvalorizada, porque é ao mesmo tempo um compêndio de saberes ancestrais e modernos, que se tensionam e, junto com isso, tensionam culturas, temporalidades”, diz o diretor. Uma preocupação da montagem é, portanto, perceber o vampiro como “uma linha permanente, que perpassa e encarna essas diferenças, uma chave poética, mas não só, de compreensões do movimento do tempo, da cultura, das geografias e dos limites e não limites do humano”.

O Coletivo Soul, na região de Maramures, na Romênia | imagem: divulgação 

A imagem do tempo

Nesse sentido, a profundidade dessa figura mitológica foi buscada na ideia de desmorto, conceito que mostrou sua importância quando os artistas, em um encontro com a monja tibetana Zamba Chôzom, consideraram os significados de uma pedra. A partir da preleção da monja, a atriz Georgia Dielle, conforme conta Arrais, propôs ao grupo que “as coisas vivem por si mesmas, em um elo que não se limita pela morte, mas pela convivência com a morte: noutras palavras, o tempo é um gesto perene, que carrega sua própria memória e sua matéria, talvez mesmo sua morte, e segue”.

A equipe encontrou aí um meio de “decodificar o conceito de un-dead”, termo que está no título da peça de Stoker. “A pedra é para nós uma potente imagem do tempo, daquilo que segue, que contém, arrasta em seu corpo diferentes temporalidades – como Drácula –, e, se morre, convive com aquilo que morreu, tem a morte em si”, explica Arrais. O prefixo un em inglês, ou des em português, indicaria então não “a negação da morte, mas seu avesso, sua outra face”. Em suma, “desmorto como reverso da morte e reverso da vida, mas, sobretudo, e isto é o que mais nos interessa aqui, como uma forma de falar e olhar para o tempo, de que somos todos filhos, gestadores e pedaços”.

O que resiste à razão

Para elaborar Undead, a equipe construiu uma dramaturgia a partir da obra de Stoker, com base no original e em pesquisas a respeito da mitologia em torno do “desmortal” – essa criatura paradoxal entre morte e vida –, o que envolveu viagens à Amazônia e à Romênia. O método foi sugerido pelo personagem, afirma Arrais: “Faz parte da própria imagem-metáfora Drácula cruzar ou bordear limites: é vivo e não é, é homem e não é, é humano e não é, está aqui e não está”. Na escolha de quais lugares percorrer, buscaram “geografias que se apresentassem como ‘sombras’ da cultura hegemônica ocidental”.

Assim, ambas as localidades visitadas resistem de algum modo à absorção pela cultura hegemônica, de acordo com Arrais – “a Amazônia como borda ocidental da expansão europeia, e a Romênia sua borda oriental”. São “contrapontos do mundo ocidental”, que “a luz da ciência, da razão, do sujeito moderno” não consegue captar por completo, em que “a ignorância se estabelece como valor”. Cada viagem trouxe uma descoberta.

“Na Amazônia, na relação homem-natureza”, diz o diretor, “vimos Drácula e sua sombra persistente.” O grupo viajou à Cabeça de Cachorro, uma região no noroeste amazônico. Arrais ressalta a multiplicidade simbólica do local: seriam faladas lá 23 línguas e haveria nove cosmogonias – mitos de criação do mundo – nativas. “Foram 40 dias de barco, por meio de uma ideia concreta de ‘paraíso das águas’, de território infinito e sob a sensação de Drácula como essa força que nos espreita da floresta.”

Quanto à Romênia, pesou a vontade de “sublinhar a força do encontro geográfico” – de sentir, em pessoa, o território. “Há saberes somente acessados na pele das coisas, ao tocá-las com seu próprio corpo, como segredos que não se transmitem de outra forma”, conta o diretor. A equipe se impressionou com a proximidade entre a Romênia de Stoker – que nunca foi ao país, apenas “o sonhou” – e o espaço real. “Foi uma experiência forte a de estar num território ao mesmo tempo imaginado e que se apresentava concretamente.”

A ameaça à cultura ocidental

O elenco do Soul é formado por Magno Carvalho (também produtor-executivo), Georgia Dielle, Andy Mawun, Janaina Marcout, Edicleison Freitas e Evan Teixeira, com direção musical de Julian Abramovav e direção de vídeo de André Moura Lopes. A dramaturgia ficou por conta de Alexandre dal Farra e Patrícia Portela. No momento, o grupo está na França, onde fez uma leitura da peça no festival MigrActions, realizado no Théâtre de L'Opprimé. Undead: Desmortais do Inominável deve estrear em 15 de novembro, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, em Portugal. O processo de criação também gerará uma obra – um documentário/ficção dirigido por André Moura Lopes.

Questionado sobre como vê a sua obra em confronto com a abundância de material em torno de Drácula e dos vampiros, Arrais diz que “é estimulante para nós o cotejamento dessa obra com o clichê Drácula”. Para ele, a maneira como esses seres são figurados perde algo de essencial. “A visão recorrente e estabelecida sobre a obra de Stoker na cultura ocidental talvez diga menos sobre Stoker do que sobre a cultura ocidental: é como se a tentativa de simplificar a obra a um clichê maniqueísta quisesse sublimar os pontos delicados, mesmo ameaçadores, que ela suscita sobre essa cultura.” Essa percepção indica, assim, um interesse central em Undead: “É essa cultura que simplifica Drácula o que queremos pôr em evidência por meio da obra teatral”.

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