por Victória Pimentel 

Entre os 117 projetos selecionados no programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016, é notável a quantidade de propostas que têm como objeto central a cultura brasileira e suas manifestações. Desses projetos, dois deles se dedicam às festas do Divino Espírito Santo que acontecem em diversos estados do Brasil, sempre de modo singular. São eles: Itinerâncias de uma Jovem Caixeira pelas Cantigas, Lugares e Mulheres Cantadeiras Escondidas no Maranhão e Cantos das Folias do Divino de Monte do Carmo – o primeiro, um documentário; o segundo, a gravação de um CD de cantos e a publicação de um caderno de partituras.

À sua maneira, cada um trata da festividade sob olhares diversos, destacando as particularidades da prática cultural em diferentes regiões do país. Idealizado por Bartira Helena Reis de Menezes, Itinerâncias de uma Jovem Caixeira adentra as tradições da festa que acontece em cidades do interior do Maranhão, enquanto Cantos das Folias do Divino de Monte do Carmo, encabeçado pela Associação dos Foliões, se volta para a música característica das folias de Monte do Carmo, cidade no Tocantins.

Mulheres à frente

Bartira acompanha a Festa do Divino Espírito Santo desde pequena. “É parte da história das mulheres da minha família, das mulheres que me criaram e que hoje formam comigo o grupo de caixeiras que trouxe a Festa do Divino do Maranhão para São Paulo”, conta. “Essa festa acontecia na rua da casa de minha avó dona Francisca, e as minhas tias e a minha mãe brincavam de fazer Festa do Divino com lata de leite e roupas de papel desde muito novas.”

De várias gerações, as mulheres Caixeiras têm papel estrutural na festejo do Maranhão
De várias gerações, as mulheres Caixeiras têm papel estrutural na festejo do Maranhão

No Maranhão, além de ser um rito importante para os cristãos, a festividade faz parte do calendário religioso afro-brasileiro. Foi assim que Bartira, formada na Casa Fanti-Ashanti – ligada ao tambor de mina e ao candomblé –, aprendeu todos os fundamentos e particularidades da celebração e se tornou uma das mulheres caixeiras, personagens estruturais na Festa do Divino. São elas que conhecem todo o ritual, os toques e os cânticos. “São responsáveis pelas partes mais importantes da festa, como costumamos cantar: ‘Deixe-me cantar bem alto para chamar as companheiras. Sem elas não se faz festa, quem toca caixa é caixeira’”, diz a diretora.

A vontade de produzir um documentário que registrasse a manifestação em diversas comunidades de festeiros do interior do Maranhão veio depois. Bartira conta que seu tio, o babalorixá Euclides Talabyan, tinha a intenção de lhe passar o comando da Festa do Divino da Casa Fanti-Ashanti. Na época, por morar em São Paulo, ela não pôde aceitar a proposta. Quando o tio faleceu e a festa na casa foi suspensa, a diretora passou a refletir sobre seu papel como caixeira e sobre a importância da manifestação. “Sempre tive vontade de conhecer as festividades do interior para conhecer suas particularidades. A morte do nosso grande Pai Euclides me fez perceber a urgência de ouvir e aprender com os mais velhos, de estar com eles, de estabelecer uma convivência com caixeiras de outras matrizes para aprender com elas”, diz. Segundo Bartira, a ideia é costurar a sabedoria das gerações mais velhas de mulheres caixeiras de diferentes cidades com a sua própria vivência, conferindo ao documentário o olhar de “uma herdeira da tradição”.

O filme será desenvolvido ao longo de duas viagens ao Maranhão. Na primeira haverá pesquisa e aproximação com as caixeiras de cada comunidade. “Pretendemos construir um ambiente que seja pessoal e íntimo, e não apenas descritivo e informativo”, explica Bartira. “Para isso é necessária essa aproximação para que eu também me apresente e conte a minha história, garantindo que o documentário seja baseado em uma relação entre iguais.” As gravações ficam reservadas para a segunda viagem. Serão registradas entrevistas com as caixeiras, as festas em si, as trocas de versos e outros detalhes do ritual, além de um encontro do grupo de caixeiras da família Reis Menezes – a família da diretora – para tocar com mulheres de outra comunidade.

“Mulheres conduzirem um festejo tão importante faz toda a diferença", diz Bartira
“Mulheres conduzirem um festejo tão importante faz toda a diferença", diz Bartira

 

Bartira conta que, além de preservar e dar luz à Festa do Divino Espírito Santo no Maranhão, o documentário faz parte de um esforço para formar novas caixeiras e dar continuidade à tradição. Segundo ela, a presença das mulheres no centro do evento é uma particularidade importante da festa – e, por isso, um grande diferencial. “Mulheres conduzirem um festejo tão importante faz toda a diferença. São elas que detêm o conhecimento e realizam a festa cantando, dançando e tocando os tambores, uma característica bem específica, já que os homens normalmente tocam os instrumentos”, destaca. Na Festa do Divino no Maranhão, eles são coadjuvantes. Bartira conta que, durante o levantamento do mastro, um dos rituais mais importantes da comemoração, as caixeiras cantam: “O mastro do Espírito Santo é de pau de mamoré. É carregado por homem e festejado por mulher”. “Isso mostra a importância da energia feminina”, diz a diretora. “Torcemos que o sagrado feminino ajude a mudar as relações humanas e que a mulher consiga, de fato, um lugar igual ao dos homens na sociedade.”

Cantos sagrados

Enquanto Bartira desenvolveu uma relação com a Festa do Divino Espírito Santo desde a infância, Eliane Castro, do coletivo Arte e Memória - Projetos Culturais, se envolveu com as festas e as manifestações locais através de seu trabalho e de sua vivência com a pesquisa e a aplicação de políticas públicas para a proteção da cultura do estado. Maranhense, ela se mudou para o Tocantins em 1999 e começou a atuar nessa área em 2000.

Em parceria com a Associação dos Foliões, Eliane comanda o projeto Cantos das Folias do Divino de Monte do Carmo, que busca registrar os cantos sagrados entoados nas folias do Divino de Monte do Carmo, conhecimento que só existe na memória dos detentores desse saber. “Gravar um CD com as músicas do Divino Espírito Santo de Monte do Carmo é um desejo antigo, especialmente dos foliões e dos amantes da cultura tradicional de Monte do Carmo”, conta ela.

Além dos cantos da celebração, os foliões também gravaram canções de suça e de roda
Além dos cantos da celebração, os foliões também gravaram canções de suça e de roda

 

Além da gravação do disco, o projeto consiste na publicação de um caderno de partituras com os cantos das folias, considerados sagrados. São essas canções que anunciam os ritos do giro – peregrinação dos foliões pela cidade e pelo sertão que, em Monte do Carmo, dura até 30 dias, com o intuito de pregar o evangelho e arrecadar donativos para a Festa do Imperador do Divino Espírito Santo – e determinam a sequência da celebração. “O toque da caixa anuncia a chegada dos foliões; o canto de licença pede acolhida; o canto do curral abençoa as criações; o da esmola agradece a dádiva recebida do dono da casa; o do bendito se faz em agradecimento às refeições; e o canto de despedida anuncia a retirada”, explica Eliane.

A gravação do CD, que aconteceu em um estúdio móvel montado em uma fazenda em Monte do Carmo, registrou também canções de suça, de domínio popular – que marcam o último momento do giro, “a pura diversão quando todos que estão no giro entram na roda, ao som de pandeiros e violas” –, e canções de roda criadas pelos próprios foliões e que falam sobre seu dia a dia e sua vivência no festejo.

Além de realizar um desejo dos foliões, o projeto cumpre o objetivo de auxiliar na preservação, no registro e na disseminação de um bem cultural – os CDs e os cadernos serão distribuídos em escolas públicas, bibliotecas e escolas de música do Brasil. Eliane conta que nos últimos anos o estado do Tocantins tem vivenciado “uma absoluta ausência do Poder Público em relação à preservação, ao fomento e à promoção da cultura como um todo”. Ela se refere ao cenário como um momento de retrocesso e faz um apelo: “É de fundamental importância que [projetos como Cantos das Folias do Divino de Monte do Carmo] sejam fomentados em todo o país, para aprendermos mais sobre a nossa formação cultural, nossas semelhanças e diferenças, e também para registrarmos esse conhecimento para as gerações futuras”.

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