Por Adriana Ferreira Silva
Em 2010, a artista Aline Motta foi escolhida pela avó materna, Doralice, então com 99 anos, para ser portadora de um segredo que mudaria os rumos da sua vida profissional. A confidência se transformaria no ponto de partida para Pontes sobre Abismos, projeto que, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016, resultará num livro de artista e numa instalação audiovisual nos quais a fluminense envereda por caminhos que levam às suas origens.
“O que minha avó me contou dois anos antes de morrer é algo recorrente em muitas famílias e revela as relações de abuso de poder entre patrões e empregados. É algo que está nas entrelinhas dos álbuns de fotografia, nas piadas repetidas à exaustão, nas mentiras que dizemos para não ofender, naquilo que é falado mas permanece como uma sombra, prestes a ser escancarada”, reflete Aline. “Por meio da arte, quero sensibilizar as pessoas para questões que são minhas, mas também da sociedade brasileira, que se recusa a encarar o espelho e se olhar como de fato é: escravocrata, aristocrática, classista, racista, hierarquizada. Admiro quem está na militância direta, mas essa não é minha vocação. Estou em outro embate, que é o das artes visuais.”
Nascida em Niterói, Aline estudou cinema na The New School, em Nova York, e trabalhou como continuísta por uma década, período no qual participou da produção de filmes como O Homem do Futuro (2011), de Cláudio Torres, e Corações Sujos (2012), de Vicente Amorim. Mas sentia um “vazio”: “os anos passavam e eu não conseguia fazer o que realmente queria porque nesse meio tudo é muito caro”, diz ela.
Disposta a tomar as rédeas do seu destino, Aline teve aulas de arte com a escultora mineira Iole de Freitas, no Parque Lage, no Rio de Janeiro, e passou por uma experiência interdisciplinar no projeto AfroTranscendence, encontro idealizado pela designer Diane Lima cuja primeira edição, em 2015, reuniu criadores da cultura afro-brasileira contemporânea. “Foram três dias de imersão artística que me ajudaram a pensar numa série de questões sobre minhas origens.”
Para desbravar o percurso dos seus antepassados, Aline iniciou uma jornada traçada em quatro temporadas de residências artísticas. A primeira delas foi uma viagem ao lado do pai, Everaldo, de 77 anos, rumo a Itaperuna, no noroeste do Rio de Janeiro, onde nasceu a avó paterna. “Fomos subindo por cidades mineiras, passando por Mariana, Barbacena, Ouro Preto, pesquisando documentos em cartórios, paróquias e no Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]. Consegui informações que me levaram até a décima geração da família”, afirma ela.
Também nascido em Niterói, Everaldo, que é branco, tem origens portuguesas. “Seus ascendentes saíram em 1700 do norte de Portugal, uma região de onde as pessoas continuam migrando até hoje”, explica Aline. “Meu pai vinha de uma família que tinha ‘posses’, mas há duas gerações perdeu tudo. Foi com a administração da igreja de Mariana que encontrei os documentos mais valiosos porque, como os lugares eram pequenos e os parentes casavam entre si, era preciso que o padre local autorizasse a união. Numa delas, achei um texto que dizia: ‘aqui é muito apertado, onde não se descobre marido com facilidade, por isso, a noiva tem de se casar com o primo’.”
A segunda viagem foi a Vassouras, no centro do estado do Rio, de onde veio a família da mãe, que era negra e morreu em 2011. “Na paróquia havia livros de batismo, casamento e óbito para negros e para brancos. Mesmo após a Lei do Ventre Livre [1871] e o fim da escravidão, a separação persistiu”, comenta a artista. Vassouras, no Vale do Paraíba, era uma das cidades onde viviam os barões do café. Em determinado período, diz Aline, moravam na região 9 mil pessoas livres e 20 mil escravizadas. “Mas todas as histórias que se contam lá ainda hoje giram apenas em torno do cotidiano dos barões”, afirma a artista, que visitou uma das fazendas históricas. “O proprietário me contou que estava usando o espaço da antiga senzala masculina para realizar casamentos. Me espantou que as pessoas se casem num lugar onde aconteceu um dos piores crimes contra a humanidade.”
A pesquisa de Aline a levou a outras duas paradas: Portugal, onde colheu mais informações sobre os antepassados paternos e maternos – chegando a encontrar ligações com a família real brasileira –, e Serra Leoa, região de onde é provável que tenha partido outro núcleo dos seus parentes, descendentes de um povo chamado Mende. Aline chegou ao país africano graças a um teste de DNA, que ela, no entanto, não considera definitivo. “Não quero dar ênfase a isso porque é preciso levar em consideração as migrações internas, entre outros fatores.”
Esse périplo foi registrado por Aline em textos, vídeos e fotografias que compõem Pontes sobre Abismos – cuja finalização está prevista para 22 de julho de 2017. “As histórias não serão narradas de maneira linear. Passado, presente e futuro acontecem em paralelo. Quero olhar para trás e para a frente ao mesmo tempo”, descreve. Mais do que rever a sua biografia, a pesquisadora quer instigar as pessoas a questionar as próprias origens: “Perguntem aos seus pais, aos seus avós. Sempre há alguém que se lembra de tudo. Só vamos mudar o Brasil dessa forma.”