por Adriana Ferreira Silva

Quando a artista plástica Carolina Cerqueira e o doutorando em sociologia e antropologia Tálisson Melo de Souza decidiram fazer Mesmo Sol Outro, a ideia era reunir em um livro digital imagens e elementos da cultura visual e do patrimônio que conectam vivências de negros no Brasil e em Luanda, capital de Angola, a partir das pesquisas realizadas pela dupla nesses locais. O que se deu no momento em que o projeto foi colocado em prática, ao ser contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016, foi uma reviravolta de conceitos e ideias provocada pelas experiências vividas por eles, surpreendidos pela complexidade das relações sociais e raciais com as quais se depararam. “O contato direto com as pessoas e os contextos deslocaram nossas expectativas e perspectivas”, explica Tálisson.

Mesmo Sol Outro é um projeto dos pesquisadores Carolina Cerqueira e Tálisson Melo de Souza

Até iniciarem o périplo por três cidades e dois países, os amigos, que se conheceram na graduação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) – na cidade em que ambos nasceram –, pensavam em realizar uma série fotográfica que evidenciasse a ascendência e a descendência negra no Brasil e as dificuldades de reconstruir essa identidade, anulada e negada durante o processo de escravização. “Carol já desenvolvia um trabalho em que fazia algumas relações entre seu autorretrato e questões sobre a raça”, explica Tálisson. “Ela começou a pensar seu corpo sob a perspectiva das representações artísticas e históricas do corpo da mulher negra.” O resultado, um conjunto de fotomontagens, ganhou um prêmio da prefeitura de Juiz de Fora para se transformar numa exposição. “Foi quando Carol me convidou para ser o curador”, afirma o artista.

Das conversas para a montagem dessa mostra nasceu Mesmo Sol Outro, expansão do tema inicial. “Propus a Carol que fôssemos a contextos diferentes para, no contato com as pessoas, incorporar outras percepções dessas questões raciais”, descreve Tálisson. Os lugares escolhidos são, para eles, focos de resistência da cultura negra material e imaterial: Rio de Janeiro e Salvador, por terem sido centros de entrada dos escravizados, e a comunidade quilombola Colônia do Paiol, em Bias Fortes, na região da Zona da Mata Mineira. Luanda, em Angola, foi incluída por ser o porto de onde saiu parte dos africanos traficados para a América. Por fim, Johannesburgo, capital da África do Sul, acabou entrando na trajetória da dupla porque é onde Carolina vive hoje e realiza um mestrado em artes, na Universidade de Witwatersrand.

O primeiro impacto ocorreu em Colônia do Paiol. Com a ajuda de pesquisadores que realizam trabalhos com os quilombolas, eles fizeram a primeira visita a Bias Fortes em agosto de 2016 e logo perceberam a complexidade da comunidade. “A ideia de quilombo é idealizada e muito pouco humanizada”, diz Tálisson. Guiados pelo neto de um dos fundadores do quilombo, que existe há 120 anos, os dois foram percebendo que não existia uma fronteira entre as casinhas da cidade em si e as da comunidade. Isso porque, com o passar dos anos, houve um processo de “compressão” do quilombo inicial, por motivos como a grilagem de terras e o desenvolvimento urbano.

Até pouco tempo atrás, os moradores nem mesmo sabiam que eram remanescentes de quilombolas: eles acreditavam estar em uma periferia afastada, marginalizada pela maioria de descendentes de portugueses e italianos que formam a elite de Bias Fortes, e, por motivos que ignoravam, o local onde viviam tinha uma predominância de negros. “Identidade é uma palavra nova para eles”, afirma Tálisson, lembrando que boa parte do que pode ser considerado patrimônio cultural foi demonizada, ora pelo processo de evangelização – que refuta, por exemplo, religiões de matriz africana –, ora pelo preconceito e pela assimilação. “Patrimônio e tradição só se tornaram questões após eles passarem pelo processo de politização.”

Mas a principal descoberta que os dois pesquisadores fizeram foi a de que, usando a câmera fotográfica, perdiam parte dessa riqueza de contrastes. Então eles decidiram restringir o aparelho, utilizando-o somente para fotografar os espaços, e não as pessoas, prática levada ao extremo após uma experiência pela qual a dupla passou em Salvador em abril deste ano. “Estávamos na Barroquinha, ponto de tensão no centro histórico, devido ao tráfico de drogas, quando fomos assaltados e levaram todo o nosso equipamento”, conta Tálisson.

A experiência teve duas consequências. Circulando pelos becos dentro de uma viatura, na tentativa de encontrar os pertences roubados, eles acompanharam a maneira violenta com que policiais interpelavam grupos de rapazes. Todos negros. “Passamos a pensar em todas as formas de organização de pessoas negras e brancas nas cidades. A cada viagem foi ficando mais claro como essas questões são complexas”, diz o artista. Por fim, resignados a seguir sem os registros digitais (os smartphones também foram levados), os dois adotaram uma câmera analógica. “A câmera digital estava viciando nosso olhar”, acredita Tálisson. “As fotos feitas de maneira analógica são muito mais integradas ao espaço do que as digitais.”

Nas viagens a Luanda e a Johannesburgo, algumas impressões se acentuaram. Tálisson percebeu, por exemplo, divisões muito claras entre brancos e negros. “Nas ruas de Johannesburgo eu era o único branco, mas na universidade havia vários, algo que ocorre também na Universidade de São Paulo [USP] e em bairros de Juiz de Fora ou de Salvador.” Ainda foram apresentados a novas formas de racismo em Angola, onde descobriram, entre outras características, que ser “mulato” ou negro “assimilado” (que abriu mão de suas tradições) garante status na sociedade branca portuguesa – que manifesta o preconceito no dia a dia de maneira escancarada.

O resultado de todas essas vivências será relatado por meio de fotografias, desenhos e gravuras em um livro de artista, dividido em quatro capítulos, nos quais eles tentam dar conta de todas essas complexas relações raciais, além de apresentar o patrimônio sob a perspectiva das comunidades pelas quais passaram. “Em Colônia do Paiol, a broa com laranja, a feijoada feita com ora-pro-nóbis e o tambor tocado durante a missa são tradições importantes que precisam ser registradas antes que acabem”, descreve Tálisson.

Após a finalização de Mesmo Sol Outro, ainda neste ano, ele e Carolina pretendem dar continuidade ao trabalho criando, por exemplo, um material didático para as escolas do antigo quilombo. “Tudo o que compramos para realizar o projeto, como livros e catálogos, já foi doado a eles”, finaliza o artista.

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