Por Leticia de Castro

A fotografia foi a porta de entrada de Milton Guran na antropologia. Um dos fundadores da agência de fotojornalismo Ágil, ele visitou pela primeira vez uma aldeia indígena em 1978, acompanhando o cineasta Vladimir Carvalho em uma reportagem para o Jornal de Brasília. Depois daquela experiência, Guran ainda voltaria outras diversas vezes ao Xingu e passaria outras tantas temporadas com os Xavante e os Ianomami.

O contato com os indígenas fez Guran migrar gradativamente do fotojornalismo para o campo da antropologia visual, e foi nessa nova área que sua carreira se concentrou a partir de meados dos anos 1980. Na década seguinte, enquanto fazia seu doutorado em antropologia social e etnologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), descobriu um novo objeto de estudo, que se tornou o grande foco do seu trabalho desde então: os agudás, os brasileiros de Benim.

Membros da comunidade agudá em Porto Novo, capital do Benim | foto: Milton Guran
Membros da comunidade agudá em Porto Novo, capital do Benim | foto: Milton Guran

 

Há mais de 20 anos, Guran se dedica a estudar esse fenômeno muito particular que, como tantos, conecta o Brasil à África: a migração de escravizados libertos de volta à sua terra de origem. Ao longo do século XIX, muitos ex-escravizados decidiram voltar para casa, embarcando para onde hoje se situam as repúblicas do Benin, do Togo e da Nigéria, na África. Ganharam o nome de agudás, uma corruptela de “ajuda”, palavra que forma o nome do forte do porto São João Batista da Ajuda, localizado na principal cidade que recebeu esse grupo que retornava ao continente africano: Ouidá, no Benim.

“Ao voltar, muitos já não encontraram suas aldeias ou remanescentes de suas famílias. E ainda precisaram lidar com o estigma da escravidão”, conta Guran. A saída que eles acharam para reconstruir a vida na África foi assumir a identidade brasileira, associando-se a seus antigos algozes, brasileiros traficantes de escravos. “Eles diziam que haviam renascido no Brasil, se tornando brasileiros”, diz o pesquisador. Assumiram, então, sobrenomes tipicamente portugueses, como Souza e Silva, e adotaram o português como idioma principal, em vez do iorubá local.

Na época, a África era uma sociedade rural que praticava uma agricultura de subsistência. A chegada dos agudás provocou um impacto não apenas cultural e comportamental, visto que eles levaram uma série de novos costumes, mas também econômico e político. Seus conhecimentos técnicos em áreas como agricultura, contabilidade, trabalhos manuais, fruto da experiência em lavouras brasileiras, fez com que esse novo grupo exercesse influência política, cultural e econômica na região, principalmente no Benim, epicentro do fenômeno. “O Brasil já era uma sociedade protocapitalista bastante desenvolvida. Os agudás chegaram à África com qualificações profissionais consideráveis. Eram marceneiros, contadores, e tinham o domínio de técnicas importantes de plantio”, conta Guran. Levaram a cultura ocidental à África antes mesmo dos colonizadores franceses.

Frutos

Toda essa pesquisa já rendeu muitos desdobramentos, além da tese de doutorado defendida na França em 1996. Em 2000, Guran publicou no Brasil e na França o livro Agudás – os “Brasileiros” do Benim. Dois documentários, Atlântico Negro (Renato Barbieri, 1998) e Pierre Fatumbi Verger: Mensageiro entre Dois Mundos (Lula Buarque de Hollanda, 2000), também se basearam em suas pesquisas.

Agora, com o apoio do programa Rumos Itaú Cultural, o antropólogo está concluindo a organização de todo o seu acervo de mais de 20 anos de pesquisa. Até dezembro de 2017, todo o conteúdo produzido pelo pesquisador será disponibilizado na internet, em um site que será hospedado nas páginas do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi), da Universidade Federal Fluminense (UFF), instituição à qual Guran é associado, e do Itaú Cultural.

O material está dividido em três categorias: documentos visuais (cerca de 2 mil imagens, das quais 300 serão tratadas e disponibilizadas para uso), arquivos sonoros (depoimentos e registros de cantigas em português típicas dos agudás) e textos (transcrição de entrevistas e documentos de famílias).

Esses documentos descrevem diversos aspectos e práticas do grupo: as principais personalidades e famílias, festas tradicionais (como o Carnaval), instituições, culinária, arquitetura e mobiliário. Há, por exemplo, registros de rituais como a Festa de Nosso Senhor do Bonfim, comemoração típica da Bahia “importada” para a África pelos agudás e que até hoje é celebrada no país. E também imagens do Folguedo da Burrinha, uma forma antiga de Bumba Meu Boi.

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Agudás celebram a Festa de Nosso Senhor do Bonfim em Benim, 2010 | foto: Milton Guran
Agudás celebram a Festa de Nosso Senhor do Bonfim em Benim, 2010 | foto: Milton Guran

 

“Os agudás, além de representarem um caso excepcional de construção de uma identidade social baseada em matriz brasileira longe das nossas fronteiras, são protagonistas de um raríssimo processo de engenharia social que lhes permitiu suplantar o estigma da escravidão no seio da sociedade que os tornou escravos”, defende Guran no projeto.

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