por Duanne Oliveira Ribeiro

 

A herança africana no Brasil é o foco de dois médias-metragens apoiados pelo Rumos 2015-2016 que enfatizam vivências quilombolas: Marambiré – Corporalidade, Música e Fé, de André dos Santos, sobre o marambiré, manifestação cênica, musical e religiosa da comunidade Pacoval, de Alenquer, no Pará; e Furna dos Negros, de Wladimir Franklyn Lima de Almeida, sobre o quilombo Tabacaria, em Palmeira dos Índios, em Alagoas. As duas produções estão atualmente em montagem.

Para ambos os diretores, o interesse pela recuperação da memória dos povos negros vem tanto de uma curiosidade pelo outro como de uma reelaboração pessoal. André fala da sua vontade de “mostrar a pluralidade sociocultural amazônica” e Wladimir ressalta a redescoberta da sua identidade, processo que foi “natural como um chamado, algo que se sente sem explicar”. Nos depoimentos a seguir, eles comentam a origem dos projetos e as suas escolhas estéticas e políticas.

Marambiré – Corporalidade, Música e Fé

O marambiré é uma dança de raízes africanas – congo-angolanas, provavelmente do grupo etnolinguístico banto –, porém com muitos elementos católicos. Nela se representa uma corte real, com rei de congo, rainha de congo, rainhas auxiliares, duas filas com valsares e um contramestre, tudo em louvor a São Benedito. As letras dos cantares misturam português com palavras africanas, das quais muitas vezes os brincantes desconhecem o significado.

Conheci o Marambiré ainda criança, em um dos encontros Raízes Negras em que um cordão se apresentou. Essa imagem ficou gravada na memória e, quando surgiu o edital do Rumos, vi a oportunidade de registrar essa manifestação ímpar e pouco conhecida até mesmo dentro do estado do Pará.

Cordão de marambiré na comunidade Pacoval, de Alenquer, no Pará | foto: divulgação
Cordão de marambiré na comunidade Pacoval, de Alenquer, no Pará | foto: divulgação

 

Boa Vista, onde vivo, e Pacoval são comunidades distantes, apesar de estarem na mesma região do Pará. Os encontros Raízes Negras foram idealizados para que os negros do Baixo Amazonas pudessem conhecer seus pares do Alto Trombetas e começar a organização na luta pela terra, na qual a comunidade quilombola Boa Vista é pioneira, sendo a primeira no Brasil a receber o título definitivo coletivo da terra – previsto no artigo 68 das disposições constitucionais transitórias –, abrindo precedentes para as demais comunidades no país. Pacoval foi a segunda a receber título de terra no Brasil, um ano após Boa Vista.

O que mais me encanta no marambiré é o respeito dos participantes pela tradição e pela disciplina, que o entendem como uma religião. A festa dura praticamente um mês e envolve toda a comunidade. O amor pelo marambiré está acima de tudo para a comunidade Pacoval. É um ritual em que a fé está acima de tudo; simplesmente mágico e contagiante.

Nossa proposta é provocar uma imersão do espectador do filme, e para isso escolhemos a narrativa do cinema verdade, no qual a estética do documentário está na exploração corpo a corpo com o real. Queríamos registrar a história nos locais onde acontece o ritual do marambiré e a vida cotidiana do Pacoval. Tomamos como referência a linguagem clássica do cinema etnográfico (cine verité) de Jean Rouch. Com exceção das entrevistas, praticamente não interferimos em nada, fazendo uma direção mais a distância, utilizando lentes teleobjetivas e drone. Esse tipo de filmagem só é possível quando se tem a confiança do grupo registrado, para que ele fique totalmente à vontade para ser filmado. Creio que contou muito minha relação de amizade com a comunidade, além do fato de também ser quilombola, de falar a mesma língua e ter uma equipe que incorporou com excelência a intenção do projeto.

Na Amazônia essas manifestações culturais sobrevivem por meio da oralidade e da performance, muitas vezes através de pessoas já idosas, detentoras de um conhecimento ímpar que nem sempre conseguem transmitir – o que demonstra a urgência desse tipo de registro. Essas manifestações, como o marambiré, foram importantes para a afirmação e o reconhecimento desses povos como quilombolas, algo crucial para a conquista e a manutenção de suas terras e desse conhecimento centenário, o que será abordado no documentário.

Essa afirmação é contínua e necessária para que se evitem retrocessos no processo de conquistas dos negros no Brasil e principalmente na Amazônia. Nesse sentido, o documentário se torna uma ferramenta de salvaguarda e memória, mas também de empoderamento e voz para essas comunidades tradicionais, que o Brasil precisa conhecer e respeitar.

Furna dos Negros

O projeto surgiu do meu primeiro contato com o quilombo, há cerca de nove anos, durante uma reportagem, quando eu ainda atuava como jornalista. Desde essa visita, percebi que se tratava de uma história única, de muita força, que revelava bem as contradições de Alagoas e que não caberia numa simples matéria. Ao longo dos anos, visitei a comunidade em momentos distintos, fui conhecendo alguns de seus moradores e pesquisando mais sobre a biografia de luta deles.

Claro que esse ponto de partida decorreu também de uma identificação com a luta por justiça social da comunidade e da questão racial e histórica envolvida. Como ocorre com quase todo brasileiro, a raiz negra está presente também na minha história pessoal, e isso me motivou ainda mais a me aprofundar no contato com o povo de Tabacaria. Percebi que eles mesmos estavam vivendo o processo de entender o que é ser quilombola. Ao mesmo tempo, esse autorreconhecimento da comunidade como remanescente de quilombolas garantiu a conquista da terra, que vem dos ancestrais, numa linha direta que vai até a época do Quilombo dos Palmares.

É uma dupla jornada de autoconhecimento. Mostra o que aprisiona e o que é libertador. Em Mestre Nena, um dos principais personagens do filme, vemos o alvorecer de um homem livre. Um descendente de homens escravizados prestando reverência à sua origem, guardada na memória da Pedra do Esconderijo, um dos locais sagrados da comunidade.

Mestre Nena (de azul) e sua família em cena do documentário | foto: divulgação
Mestre Nena (de azul) e sua família em cena do documentário | foto: divulgação

 

É disso que é composto o filme. Coisas vividas por pessoas que, mesmo desprovidas dos bens essenciais a uma vivência digna, não cansam de lutar diariamente pela liberdade. E uma forma de lutar é cultivando a imaginação e o sonho. Pequenos gestos vividos, contados e sonhados. Um recorte, um retrato, se preferirem. Contos e cantos de pessoas comuns. Buscar o íntimo nessas relações e nesses momentos é o desafio. Como o projeto ainda está em processo, alguns aprendizados são assimilados, outros estão amadurecendo. É tinta muito fresca ainda.

Os textos do livro A Razão Quilombola, de Dirceu Lindoso, serviram de uma espécie de bússola, um instrumento para compreender tanto o papel histórico dos negros fugidos e da organização política dos quilombos, da resistência, com suas cercas reais, quanto o panorama dos quilombos atuais em Alagoas, cuja memória da tradição quilombola se encontra em vias de apagamento, em decorrência da ausência de atenção do Poder Público e do avanço do latifúndio, do poder econômico, sobre as suas áreas – e tudo o que decorre disso, como a negação da religiosidade de matriz africana, principalmente.

Tabacaria, por exemplo, é uma comunidade que foi tratada como de trabalhadores sem-terra, invasores de terras produtivas, quando, na verdade, os locais históricos e os relatos dos mais velhos comprovaram a herança dos quilombolas e o vínculo direto com o Quilombo dos Palmares – e que, portanto, aquele solo sagrado era deles por direito. Todos esses conflitos nós constatamos em Tabacaria. Mas, para mim, a grande influência do pensamento de Lindoso vem dessa ideia de que, sem imaginação, nada se cria, nada se produz, mesmo num campo em que o rigor científico é o norte em busca da verdade, como no caso da ciência social.

Na arte, então, em que a subjetividade prevalece, a imaginação é a força matriz (e motriz) da própria expressão. A arte cria a realidade por meio da imaginação. Palco de tristeza, pobreza e amargura, mas com sede de liberdade, Tabacaria é ao mesmo tempo um local físico, com uma pequena caverna, de onde brotam os segredos do passado e do futuro, e um lugar imaginário. Há um quê de Macondo (o mítico povoado imaginado por Gabriel García Márquez em Cem Anos de Solidão). O documentário imagina, em forma de filme, como as vozes dessas pessoas reais do Brasil colidem ou confluem no discurso que cria o lugar-comum de Tabacaria.

Furna dos Negros é um convite a uma vivência na qual o que se retrata ao mesmo tempo se inventa. Os quilombolas de Tabacaria inventam um cotidiano que os liberta da dura realidade. Eles ainda sofrem na pele a perseguição por causa da cor. Pobreza, abandono, invisibilidade. Sem vez e sem voz. Mestre Nena canta em seu reisado: “Se eu fosse rei, meu reinado era na rua. Se eu fosse lua, era nova todo mês”. Agora a terra é deles, e o filme retrata o orgulho e a altivez de quem jamais se dobrou ou se envergonhou de sua condição, mesmo vivendo em condição de miséria, de abandono.

O documentário contribui como registro dos que lutaram pela afirmação da identidade negra nesse paradoxal “berço da liberdade” que é o estado de Alagoas, ou, como pontua o já citado Dirceu Lindoso: Alagoas é o que se ama, e dói. A produção quer mostrar o cenário do surgimento de uma nova geração de quilombolas. Espero que Furna dos Negros brilhe. Não só como filme, mas como reflexão.

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