Protesto de quadrinistas contra gigante digital marcou o 2019 das HQs nos EUA
27/01/2020 - 09:00
por Ramon Vitral
Janeiro é mês de leituras atrasadas e da divulgação de listas de melhores HQs do ano que passou. É um começo sempre devagar, sem grandes lançamentos ou anúncios. Fica tudo mais para a frente, numa espécie de ressaca dos vários novos títulos que chegaram às lojas especializadas em dezembro de 2019.
O calendário de lançamentos das HQs nacionais é desequilibrado. Ao Natal soma-se a Comic Con Experience, convenção de cultura pop que se tornou o maior polo anual de venda para autores brasileiros. É torcer para os grandes eventos de quadrinhos de 2020 equilibrarem um pouco mais essa agenda de lançamentos nos próximos 12 meses.
Mas não vou abrir a primeira Sarjeta de 2020 com uma lista.
Aliás, se eu tivesse feito uma lista bem específica com os grandes acontecimentos das HQs mundiais em 2019, acho que o tema deste texto ocuparia a primeira posição. Você ficou sabendo da carta aberta assinada por quadrinistas do mercado norte-americano direcionada aos organizadores de festivais de HQs exigindo que esses eventos não aceitem o patrocínio da plataforma de leitura digital de quadrinhos ComiXology?
A carta foi compartilhada no dia 9 de setembro de 2019, em uma conta do Medium com o nome Cartoonists Against Amazon (Quadrinistas contra a Amazon, em tradução livre). O colosso do comércio virtual é dono da ComiXology desde 2014 e é o principal alvo do protesto. Entre os assinantes da carta estão autores consagrados como Eleanor Davis, Jillian Tamaki, Michael DeForge, Nate Powell e Sarah Glidden.
Um parêntese sobre o que é a ComiXology: no universo dos conservadores fãs de histórias em quadrinhos, com tendências colecionistas e obsessão pelo papel, ela é a principal plataforma de leitura digital de HQs no Ocidente. Já foi chamada de “o iTunes dos quadrinhos”. Trabalha com mais de 125 editoras, incluindo as gigantes de super-heróis Marvel e DC e gigantes europeias e japonesas, como Humanoids e Kodansha. Além de milhares de autores independentes de todo o mundo.
Na carta aberta assinada pelos quadrinistas, eles lamentam a parceria de festivais tradicionais de HQs com a ComiXology por meio de patrocínio.
Eles expressam seu incômodo com a aproximação da empresa a eventos anuais como a Small Press Expo (SPX), em Bethesda, no estado de Maryland; o Toronto Comics Art Festival (Tcaf), no Canadá; o Cartoon Crossroads Columbus (CXC), no estado de Ohio; e o Thought Bubble, em Yorkshire, norte da Inglaterra. Além do patrocínio do espaço destinado aos quadrinistas em uma das maiores convenções de cultura pop do planeta, a New York Comic Con.
“A arte não é apolítica e os profissionais da arte não recebem neutralidade especial como espectadores inocentes”, diz a carta aberta. “Devemos examinar as maneiras pelas quais a Amazon usa patrocínios para camuflar sua exploração brutal de trabalhadores e os efeitos desastrosos que ela tem nas cidades em que se instala.”
A carta lista uma série de acusações contra a empresa, incluindo links que corroboram as alegações: “A empresa sujeita seus funcionários a condições de trabalho desumanas (exemplo 1; exemplo 2; exemplo 3) e suprime regularmente seus esforços de sindicalização (exemplo 1). Além disso, a presença física da empresa devasta comunidades, bairros e cidades que ocupa, deixando para trás um legado de remoções que afeta desproporcionalmente comunidades marginalizadas (exemplo 1; exemplo 2)”.
O texto pede uma autocrítica por parte dos organizadores de eventos patrocinados pela ComiXology e também dos autores que participam desses eventos e vendem seus trabalhos pela plataforma.
A carta diz: “Os quadrinhos e o método ‘faça você mesmo’ das pequenas publicações promoveram uma cultura longa e histórica de independência. Quadrinistas independentes trabalharam para criar comunidades acolhedoras de todas as vozes, especialmente as que estão à margem. A Amazon procura se proteger dentro de nossas comunidades, comprando tanto o comércio quanto a cultura de nosso meio”. A íntegra da carta pode ser lida no meu blog, clicando aqui.
Entre as reações mais imediatas ao protesto, a SPX dispensou a ComiXology como sua principal patrocinadora e recebeu o apoio de uma plataforma de financiamento coletivo. Há expectativa em relação à continuidade dos demais patrocínios e ao posicionamento da comunidade de quadrinhos sobre o tema neste ano.
A Amazon e a ComiXology não se pronunciaram publicamente sobre o protesto.
E como o tema impacta o universo dos quadrinhos brasileiros?
Fontes da coluna garantem que há planos de início das atividades da versão em português da ComiXology em um futuro próximo.
Nas últimas semanas, enviei e-mails e mensagens de WhatsApp a assessores da Amazon no Brasil com os seguintes questionamentos: “1) Qual a previsão de lançamento da ComiXology no Brasil?; 2) Vocês já firmaram parceria com alguma editora brasileira ou com algum autor nacional?; 3) A plataforma terá no Brasil a mesma dinâmica de funcionamento de sua versão norte-americana?; 4) Há planos de parceria da ComiXology brasileira com festivais de quadrinhos nacionais como ocorre nos festivais nos Estados Unidos?”. Desde o dia 3 de janeiro de 2020, nenhuma resposta.
Há uma presença crescente da Amazon no mercado brasileiro de histórias em quadrinhos. Ela investe em editoras nacionais e em produtores de conteúdo, que com frequência fazem publicidade disfarçada de jornalismo ou crítica para promover a venda de HQs e lucrarem com o sistema de parcerias da empresa, que repassa parte de seus valores aos divulgadores. Seja você simpático ou não às atividades da Amazon, suas ações se fazem cada vez mais presentes no Brasil.
Quando inaugurada a ComiXology no Brasil, qual será o escopo de suas atividades por aqui? Qual será a resposta do público? Quais serão os posicionamentos de autores e editoras? O ano de 2020 promete.
Três perguntas para… Rogi Silva, autor de Pedra Pome e Não Tenho uma Arma
A quarta edição da seção que encerra a Sarjeta é protagonizada pelo quadrinista e ilustrador Rogi Silva. Ele é autor de publicações como Pedra Pome, Não Tenho uma Arma e Aterro.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
A diversidade de autores, autoras e temas. Em cada evento de que participo conheço muita gente nova, as pessoas estão tomando coragem e colocando materiais lindos para circular. Tem também as revistas especializadas, a Plaf e a Banda. Canais no YouTube, como o Papo Zine, que se dedicam a cobrir eventos e falar sobre a produção independente. Eu torço para que esse pessoal não pare de trabalhar e que as editoras nacionais passem a dar mais atenção a essas obras.
Como leitor e autor, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Atualmente gosto dos formatos e de abordagens diferentes. Busco autores e autoras que se preocupam em descolonizar seus trabalhos, em comunicar de maneira que fuja do habitual. O quadrinho mainstream absorveu muito do que foi estabelecido pela linguagem padrão do cinema e isso me incomoda muito; atraem-me trabalhos que buscam outras soluções para contar histórias.
Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Meu pai desenhava quando criança e lia muito quadrinho, lembro dele rindo muito alto com tirinhas de jornal também. Depois, vinha me falar do Henfil [cartunista, quadrinista, jornalista e escritor brasileiro]. Ele sempre gostou de ler muito, se formou professor de literatura ainda me criando junto com a minha mãe. Falava que eu precisava ler também, ter referências e dar significado ao que eu desenhava.